O Governo Costa em 2093 dias. Recorde os principais momentos dos últimos oito anos do “hábil negociador” socialista
Catarina Cunha e Henrique Ferreira
António Costa apresentou, esta terça-feira, ao Presidente da República a demissão do cargo de primeiro-ministro, deixando para trás 2903 dias em funções enquanto chefe do Governo português. Mas ao longo de quase oito anos, o capitão Costa comandou um navio, por vezes, turbulento, carregado de “casos e casinhos”, como o próprio chamou a alguns dos últimos acontecimentos que mancharam a maioria absoluta que conquistou em 2022.
Nesta legislatura, a governação de Costa ficou marcada pelas sucessivas demissões no Governo. Em apenas 16 meses, 13 governantes deixaram o executivo. O último a sair foi Marco Capitão Ferreira, secretário de Estado da Defesa Nacional, que foi constituído arguido no caso “Tempestade Perfeita”, em julho.
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O deteriorar da relação São Bento-Belém
Mas foi meses antes, em abril, que António Costa enfrentou a fúria da opinião pública e uma oposição vincada do Presidente da República. Em causa, João Galamba, ministro das Infraestruturas, que Costa decidiu não demitir depois do polémico caso que envolveu o alegado roubo de um computador do Estado, com documentos relativos à Comissão de Inquérito da TAP, por parte do assessor Frederico Pinheiro.
Nesta altura, começavam a deteriorar-se as relações entre Costa e Marcelo. O Presidente da República defendeu publicamente a demissão do ministro João Galamba, mas o primeiro-ministro decidiu que o governante ia ficar no Governo.
A relação entre Costa e Marcelo começou bem, mas foi-se deteriorando ao longo do tempo
Demissão atrás de demissão
Costa segurou Galamba, mas as demissões já se somavam no Governo. Em janeiro, Carla Alves demitiu-se do cargo de secretária de Estado da Agricultura ao fim de apenas 25 horas. Logo que foi nomeada, a comunicação social noticiou o arresto das contas bancárias do seu marido, ex-presidente da Câmara Municipal de Vinhais, acusado de corrupção e prevaricação. A governante tinha entrado no executivo para substituir Rui Martinho, que pediu para sair por motivos de saúde.
A tomada de posse de Carla Alves aconteceu no mesmo dia em que entraram no Governo João Galamba e Marina Gonçalves, os substitutos de Pedro Nuno Santos nas pastas das Infraestruturas e da Habitação, nomeadamente. A remodelação aconteceu poucos dias depois de ter estalado a polémica em torno da secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis, que tinha recebido da TAP uma indemnização no valor de 500 mil euros.
Tomada de posse de João Galamba, Marina Gonçalves e Carla Alves, entre outros governantes
Os 500 mil euros de Alexandra Reis e a saída de Pedro Nuno
Nessa altura, em dezembro de 2022, saíam do Governo a própria Alexandra Reis, mas também Hugo Mendes, secretário de Estado que aprovou a indemnização, e Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestruturas, que decidiu “assumir a responsabilidade política” pelo caos em torno da TAP.
Mas este “escândalo” vinha precedido de um outro, que tinha deixado o primeiro-ministro debaixo de forte escrutínio. Em novembro, mês em que o ministro da Economia decidiu também demitir os secretários de Estado João Neves e Rita Marques, Miguel Alves, que tinha sido nomeado adjunto do primeiro-ministro, foi obrigado a deixar o Governo. O antigo presidente da Câmara de Caminha foi constituído arguido no âmbito da operação Teia, que investigava o pagamento adiantado a um empreiteiro para a obra de um pavilhão público, que nunca chegou a ser construído.
Antes disso, António Costa lidou ainda com a demissão da ministra da Saúde e dos seus secretários de Estado. Em agosto, Marta Temido decidiu renunciar ao cargo depois da morte de uma grávida no transporte entre hospitais que não a podiam receber.
No mesmo mês, em pleno verão, e com as férias políticas pelo meio, também Fernando Medina esteve debaixo de fogo. O ministro das Finanças, que antes tinha sucedido a Costa na liderança da Câmara Municipal de Lisboa, contratou Sérgio Figueiredo como seu consultor. O ex-diretor de informação da TVI chegou ao Governo com salário de ministro e a troco de alegados favores a Medina, mas acabou por sair pouco tempo depois.
“Casos e casinhos”, como lhes chamou Costa, mas que mancharam a governação da maioria absoluta socialista, que, desde 2022, se deparou com vários desafios. Costa viu começar a pandemia e a guerra na Europa, a inflação a aumentar e um país a braços com uma enorme crise de habitação. Além disso, os protestos dos professores, dos enfermeiros e dos médicos atormentaram os dias de um primeiro-ministro, conhecido como hábil negociador e que, contra muitas expectativas, conseguiu a reeleição para uma terceira legislatura sem precisar do apoio de mais nenhum partido.
A primeira eleição em 2015 com o apoio da “geringonça”
Mas rebobinemos a cassete para recordar os momentos mais marcantes de António Costa ao leme do país antes da maioria absoluta.
O demissionário foi empossado primeiro-ministro pelo antigo Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, a 26 de novembro de 2015, na sequência das eleições legislativas. Nesse ano, o Partido Socialista perdeu. Ainda assim, conseguiu constituir um Governo de minoria, que foi apoiado pela maioria de esquerda, um fenómeno conhecido no país como “geringonça”.
Seis meses depois, em abril de 2016, Costa via-se a braços com a primeira polémica no seu Governo.
Tudo começou quando João Soares, antigo presidente da Câmara Municipal de Lisboa, e então ministro da Cultura, se demitiu depois de ter escrito um comentário na sua conta pessoal de Facebook, que gerou alvoroço, onde prometia “salutares bofetadas” aos colunistas do jornal Público, Augusto M. Seabra e Vasco Pulido Valente. Em causa, estavam as opiniões destes à linhagem política do governante.
Mas Costa estava empenhado em conduzir uma “verdadeira reforma do Estado”. Para isso, apresentava ao país o Simplex 2016, um programa com 255 medidas para melhorar a vida dos cidadãos e das empresas. Foi aí que protagonizou um dos momentos mais insólitos do seu percurso político, ao entregar à então ministra da Presidência, Maria Manuel Leitão Marques, uma “vaca voadora”, para mostrar que no Governo socialista não existiam impossíveis.
António Costa e a "vaca voadora", em 2016
Galpgate, Pedrógão e Tancos
Em outubro do mesmo ano, dois adjuntos de António Costa demitiram-se por causa de problemas associados às suas licenciaturas. O primeiro a abandonar foi Rui Roque, na altura adjunto do primeiro-ministro para os Assuntos Regionais, por ter sido descoberto que detinha uma licenciatura falsa em Engenharia Eletrónica.
Poucos dias depois deste episódio, Nuno Félix, que era chefe de gabinete do secretário de Estado da Juventude e Desporto, apresentou a demissão, após ter vindo a público que não tinha concluído duas licenciaturas, que integravam o despacho da sua nomeação, publicado em Diário da República.
O fim do primeiro ano de governação estava concluído. Um travão ao ‘respirar de alívio’ de Costa, que durou cerca de seis meses. Em junho de 2017, três secretários de Estado - Fernando Rocha Andrade, Jorge Oliveira e João Vasconcelos - renunciaram aos cargos, logo após terem sido acusados do crime de recebimento indevido de vantagem, no âmbito do processo Galpgate. Em causa, estava a informação que tinham aceite bilhetes de viagens de avião para França pagas pela Galp para assistirem a jogos da seleção portuguesa no Euro2016.
No mesmo mês, Constança Urbano e Sousa, que na altura era responsável pela pasta da Administração Interna saiu do Governo, imediatamente depois de ter lidado com o incêndio de Pedrógão Grande, que vitimou 60 pessoas. A atuação da ex-ministra foi contestada pela oposição, que pedia a sua demissão. Mais tarde, soube-se que a própria governante pôs o seu lugar à disposição em junho, mas António Costa recusou o pedido. Esse só foi aceite após novo pedido de Constança Urbano e Sousa e dos incêndios de outubro.
Os incêndios de Pedrógão Grande fizeram 64 vítimas mortais
Em dezembro de 2017, na sequência de uma investigação levada a cabo pela TVI, o secretário de Estado da Saúde, Manuel Delgado, demitiu-se. Em causa, estava a sua ligação com a ex-presidente da instituição Raríssimas, Paula Brito e Cunha. Na altura, no âmbito desse trabalho desenvolvido pelo canal de televisão de Queluz de Baixo, o secretário de Estado foi confrontado com o facto de ter viajado com a gestora da associação e ter alegadamente pago as viagens com o dinheiro da Raríssimas.
Em 2018, um ano antes de novas eleições legislativas, mais um episódio abanava a primeira legislatura de Costa. O desaparecimento de material militar dos paóis de Tancos, polémica instalada em 2017, provocou a demissão de Azeredo Lopes, ministro da Defesa até então.
Em causa, estava se o ex-ministro tinha conhecimento das diligências da Polícia Judiciária Militar, ou se tinha contado ao primeiro-ministro a forma ilegal como o mesmo foi reavido. O antigo governante estava acusado de quatro crimes - denegação de justiça e prevaricação; favorecimento pessoal por funcionário, abuso de poder e denegação de justiça – mas foi absolvido em janeiro de 2022.
Azeredo Lopes foi ministro da Defesa Nacional de António Costa
O “milagre económico” e o fim da austeridade
Depois de anos em que a porta do Governo esteve aberta para dizer ‘olá’ aos novos governantes e ‘adeus’ aos anteriores, Costa recebeu uma ‘boa-nova’ em 2019.
Nesse ano e passados cinco anos da saída da troika do país, Portugal viveu uma espécie de ‘milagre económico’, uma vez que saiu da crise financeira e conheceu um período de forte crescimento. Devido a isso, o demissionário chefe do Governo proclamou o fim à austeridade.
A tormenta da pandemia
Passado o mar de rosas, o ano de 2020 foi um ‘colete de forças’ para António Costa com o surgimento da pandemia covid-19. A gestão do primeiro-ministro ao longo de dois anos de pandemia foi contestada por uns e apoiada por outros, mas grande parte dos portugueses, questionaram, por várias vezes, as apertadas medidas de confinamento.
Já passada a tormenta e em período de reflexão, numa aparição pública a Norte, o primeiro-ministro confessou que nem todas as medidas implementadas durante o período pandémico foram coerentes, indo assim ao encontro da opinião pública.
A “bazuca europeia”
António Costa e a presidente da Comissão Europeia, ursula von der leyen
Para atacar a crise trazida pela pandemia, a União Europeia iniciou um processo de apoio aos Estados-membros. O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), apelidado por Costa de “bazuca europeia”, prometia a maior transferência de fundos europeus de sempre. A condição era executar todos os projetos até 2026, data que pode agora ficar comprometida com a demissão de António Costa.
“Se tudo se concretizar será seguramente uma bazuca”, ressalvou, à data, o primeiro-ministro.