Para sempre, para nunca mais. 18 anos depois, Porto aprova Rua Gisberta
Ana Francisca Gomes
O nome de Gisberta vai ficar eternizado numa rua na zona das Eirinhas, na freguesia do Bonfim. A decisão foi aprovada por unanimidade na reunião pública desta segunda-feira na Câmara do Porto, com Rui Moreira a destacar que poucas autarquias teriam aprovado a proposta com todos os votos a favor. “Ainda somos uma cidade diferente, somos mesmo”, vincou o autarca.
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Passaram-se 6560 dias do crime que marcou para sempre a história da cidade. Depois de muitos avanços e recuos, a Comissão Organizadora da Marcha do Orgulho do Porto aplaude a deliberação, não deixando no entanto de realçar a importância da promoção de uma cerimónia na inauguração do novo arruamento que junte a autarquia, associações e coletivos da cidade. Para Filipe Gaspar, da organização, a toponímia “constrói memória coletiva, é um instrumento de preservação e de novas narrativas e é importante essa representatividade” da comunidade.
A história é impossível de apagar da memória dos portuenses. E na Avenida Fernão Magalhães, no Porto, o esqueleto inacabado daquele que seria um centro comercial da Pão-de-Açúcar é a cicatriz de uma ferida que ainda não sarou.
Foi em fevereiro de 2006 que Gisberta, uma mulher trans brasileira, foi agredida e violada por um grupo de 14 adolescentes durante vários dias, acabando por ser encontrada sem vida no fundo de um poço de 15 metros. Uma vida à margem atirou “Gis” para a toxicodependência e para a rua, com as agressões a serem perpetuadas num edifício então embargado, onde pernoitava numa tenda.
Isabel Magalhães trabalha numa loja de estores que abriu na avenida há mais de 50 anos e recorda-se como se fosse hoje do dia em que as páginas dos jornais retrataram uma das maiores “crueldades”: “É um ser humano, independentemente do género e, portanto, foi um choque”.
Também Manuel Cabeço, proprietário do Restaurante Triunfante 2, aberto desde o final dos anos 1980, tem esse dia bem vivo na memória. “É sempre um choque, lembro-me de vários clientes e vizinhos falarem disso e do caso ter enchido os telejornais”.
Para sempre, para nunca mais
Foi a morte de Gisberta que fez nascer a Marcha do Orgulho do Porto e catapultou o surgimento de vários coletivos. Mais do que nunca era preciso preservar a sua memória e garantir que nunca mais algo semelhante aconteceria. Filipe Gaspar, da organização, relembra que “o impacto foi tão grande para lá do Porto que só com esta tragédia é que se passou a falar e a usar a palavra ‘transfobia’”.
Uma rua não vai eliminar as micro-violências a que pessoas da comunidade LGBTQIA+, estão sujeitas todos os dias, sabe Filipe, mas é uma história que se escreve e uma porta que se abre. “A toponímia constrói memória coletiva, é um instrumento de preservação e de novas narrativas e é importante essa representatividade” defende.
Em 2021, 15 anos volvidos da sua morte, a Comissão Organizadora da Marcha do Orgulho do Porto (COMOP), em conjunto com a atriz e ativista Sara Barros Leitão, propôs, através de um abaixo-assinado, que Gisberta fosse ‘imortalizada’ através da atribuição do seu nome a uma rua do Porto.
Contudo, esta não foi a primeira vez que tal pedido foi feito. Já em 2010, o projeto “Viver a Rua” era responsável por uma das primeiras tentativas de homenagear Gisberta, uma proposta que acabaria rejeitada pela Comissão de Toponímia da cidade. Também em março de 2020, Sara Barros Leitão, a título individual, entregou à Câmara do Porto uma carta onde o tema voltou a ser abordado, naquela que foi uma reflexão sobre as ruas do Porto – “Todos os dias me sujo de coisas eternas”.
Uma proposta que dividiu a Comissão de Toponímia
A atribuição do nome de Gisberta a uma rua da cidade gerou divergências no entendimento dos critérios ditados pelo regulamento da Comissão de Toponímia, órgão consultivo da Câmara Municipal do Porto para as questões de toponímia da cidade.
À data da abertura do abaixo-assinado, que acabou a ser entregue com mais de seis mil assinaturas, Isabel Ponce Leão, presidente da comissão, afirmou ao Expresso que, apesar de ter “o maior respeito pelo caso”, “a pessoa em si nada fez em prol do Porto”.
Depois de ter sido recusada em várias outras ocasiões, a atribuição do nome de Gisberta a uma rua do Porto dividiu os votos dos membros da comissão. Dos 19 elementos que a compõem, estavam naquela reunião 13, tendo sete votado a favor e seis contra.
Em 22 de março de 2022, o Jornal Público avançou que Germano Silva tinha abandonado a comissão por motivos pessoais, lembrando, no entanto, que a discussão em torno da atribuição do nome de Gisberta mereceu a desaprovação do jornalista por “violar o regulamento”. "O regulamento prevê que se dêem nomes de ruas a pessoas do Porto, que tenham feitos notáveis. Se o regulamento está errado então faça-se uma revisão. Mas respeite-se o regulamento", adiantou à época o diário citando o jornalista.
Agora a “Rua Gisberta Salce Júnior” vai nascer entre o início da Rua das Eirinhas e vai acabar na Travessa das Eirinhas, junto à Igreja do Bonfim.
“A rua não vai resolver as nossas dores, mas é um caminho, é uma pequena peça do puzzle que se vai montando. A rua também é nossa, o espaço público também nosso, temos direito a existir, temos direito a viver e temos direito a ser pessoas respeitadas e também de contribuir para a cidade. Não estamos aqui para estar na margem, não queremos ser pessoas marginalizadas, queremos contribuir e queremos fazer crescer uma sociedade mais inclusiva, mais respeitadora”.
Comissão Organizadora da Marcha quer cerimónia de inauguração
A Comissão Organizadora da Marcha do Orgulho do Porto quer uam cerimónia na inauguração do novo arruamento que junte a autarquia, associações e coletivos da cidade.
“Gostávamos muito de construir esse caminho, achamos que também ia mostrar por parte do município uma abertura para o Porto ser uma cidade inclusiva e que acolhe todas as diversidades que nela existem e todas as pessoas que nela querem morar e viver”.