20 anos do Dragão, o estádio que ‘fez cidade’
Ana Francisca Gomes
O Estádio do Dragão, inaugurado há precisamente 20 anos, a 16 de novembro de 2003, com os olhos postos no Euro 2004, não viria a ser apenas uma mais valia para o Futebol Clube do Porto. Permitiu também ‘fazer cidade’, reativar uma parte do Porto que estava por cumprir, uma zona da deprimida freguesia de Campanhã. O tecido urbano criado pelo Plano de Pormenor das Antas criou uma nova centralidade longe das velhas centralidades da baixa e centro histórico.
Quando as condições do antigo e muito estimado Estádio das Antas deixaram de ser suficientes para as exigências do futebol moderno e surgiu a oportunidade de construção de um novo, não só o clube mas também a cidade perceberam a oportunidade que tinham diante de si. O estádio podia ser o mote de um processo de requalificação e valorização de toda a área. A Câmara mostrava-se então interessada em que o Euro 2004 fosse uma oportunidade para congregar esforços e assim nasceu a ideia do Plano Pormenor das Antas (PPA).
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Nome incontornável no lançamento do projeto, Nuno Cardoso era o então responsável pela pasta do Urbanismo na Câmara do Porto, depois de o socialista Fernando Gomes ter vencido pela terceira vez as eleições para a autarquia, em 1997. No mesmo mês em que Portugal sabe que foi selecionado pela UEFA para receber o Europeu, em outubro de 1999, Nuno Cardoso assume a presidência da Câmara Municipal, em substituição de Gomes - que interrompe o seu mandato para ir para o Ministério da Administração Interna do Governo de António Guterres.
Ainda antes da decisão da UEFA, a Câmara do Porto já tinha identificado um problema naquela área e encomendado um projeto ao arquiteto Pedro Guimarães com o Plano Pormenor das Antas em vista. “Quando entrei como vereador do Urbanismo, herdei aquele projeto com o qual não concordava nada”, relembra 25 anos depois Nuno Cardoso em entrevista ao Porto Canal.
Numa mesa do emblemático Café Velasquez, o autarca explica como o projeto inicial foi rejeitado. “Achava o projeto fraquíssimo e que era uma oportunidade perdida. Mas ao mesmo tempo sabia que era uma bomba relógio, porque no momento em que o Futebol Clube do Porto quisesse e necessitasse de construir - e havia já o projeto de um novo estádio - a Câmara teria de viabilizar naturalmente, porque não podia bloquear um projecto tão importante para a cidade”.
É então convidado para assumir o desenho do Plano de Pormenor das Antas Manuel Salgado, arquiteto de Lisboa e “um bom urbanista com provas dadas”.
Campanhã, uma das maiores e mais pobres freguesias da cidade, é um palimpsesto de narrativas territoriais que vamos descobrindo e redescobrindo conforme a percorremos. O processo de industrialização e da sucessiva desindustrialização deixou para trás um rasto de pobreza, miséria social, abandono, degradação ambiental e paisagística. “O sítio onde está hoje o Estádio do Dragão era um enorme buraco com ruínas de fábricas antigas”, recorda Cardoso.
Também Manuel Salgado, sentado na bancada poente do Estádio do Dragão, partilha com o Porto Canal o território que associado à encomenda. “Eu lembro-me que isto era um local que metia um certo respeito. Respeito… quase que medo. Porque era uma zona com muitas ruínas, muitas coisas abandonadas. Aqui em cima era a união zoófila e os cães estavam sempre a ladrar. Um clima um bocado difícil, com o barulho da VCI, com os carros sempre a passarem”.
O Dragão como uma “âncora”
A morfologia do terreno e a própria realidade socioespacial forçava uma abordagem mais ampla e a que não se pensasse isoladamente a construção do novo estádio. “A preocupação era a de fazer uma intervenção que utilizasse o estádio como uma âncora da regeneração de toda esta zona”, explica Manuel Salgado.
O estádio foi então o motor de um processo maior. “Este foi o único estádio da altura, feito cá em Portugal, que foi desenhado para ser integrado numa área urbana. Há um estádio lindíssimo, que é o Estádio Municipal do Braga, mas que foi desenhado numa antiga pedreira e que está relativamente isolado. Este não. Este era um estádio que tinha que ser construído e desenhado de propósito para uma área urbana. E, portanto, havia a preocupação de que a localização do estádio fosse a que mais valorizasse o que estava à volta”.
O PPA desenhado por Manuel Salgado só acabaria por ser aprovado pela Assembleia Municipal do Porto a 29 de abril de 2002. Em janeiro de 2002, pouco tempo após a coligação PSD/CDS ter conquistado a autarquia, Rui Rio opôs-se à construção e colocou dificuldades ao avanço das obras.
Entre as primeiras discussões para a elaboração do PPA e a sua execução, Portugal viveu tempos de grande investimento público, em particular nas cidades. A Expo 98, focada na periferia ribeirinha da zona norte do município de Lisboa, recuperou a antiga refinaria de Cabo Ruivo e acabou por dar o mote para intervenções urbanísticas realizadas mais tarde nas várias cidades.
O melhor exemplo da nova política de cidades é o Polis – Programa de Requalificação Urbana e Valorização Ambiental das Cidades, criado pelo Governo em 2000. O Polis tinha o objetivo transformar cidades através de uma estratégia assente na requalificação urbana e valorização ambiental e levou a cabo 40 intervenções em 39 cidades do continente e ilhas, num investimento total direto de cerca de 1.173 mil milhões de euros.
Também o Porto 2001, Capital Europeia da Cultura, abriu a cidade a um processo de revitalização profunda, primeiro, no espaço público, depois, em toda a malha urbana.
Para além de implantar o novo estádio, o novo projeto urbano das Antas visava criar outros equipamentos; estruturar uma nova área urbana de usos mistos com residência, comércio e serviços; melhorar as acessibilidades e a circulação da área de intervenção; estabelecer uma rede de espaços e corredores verdes e ainda estabelecer uma estrutura de espaços públicos diversificados que assegurasse novas ligações urbanas aos bairros envolventes e que ajudassem a romper a barreira criada pela VCI. Simplificando, o Plano de Pormenor das Antas resume-se numa carta de intenções, um programa: fazer cidade.
E para fazer cidade e cerzir o tecido urbano existente, uma componente fundamental do Plano dependia das acessibilidades. O projeto previa, entre muitas outras, a construção da Alameda das Antas, o reperfilamento da Avenida Fernão Magalhães, a alteração do nó viário da VCI do Mercado Abastecedor, um interface associada à estação de metro, o Túnel das Antas…
Ao fim de mais de 20 anos, PPA começa a cumprir-se
No final do ano de 2004, de todo o PPA, tinha sido apenas cumprido o projecto do estádio (terminado em 2003) e das acessibilidades. Só agora, ao fim de mais de duas décadas, é que se começa a cumprir o plano na sua plenitude e é possível começar a perceber-se como toda a área dentro do perímetro do projeto deverá ficar, após a concretização total do PPA.
“A autarquia desenvolveu a infraestrutura e é isso que deve fazer: criar infraestruturas que garantam depois que venha o investimento privado em sequência. Mas, entretanto, a partir de 2007, a grande crise do imobiliário, primeiro, e do sistema financeiro, depois, interrompeu o ritmo de desenvolvimento urbano e “parou tudo durante dez anos”, explica Nuno Cardoso.
O terreno do antigo Estádio das Antas, por exemplo, fez parte de um fundo herdado pelo Banco Espírito Santo (BES) que ainda passou pelo complexo e moroso processo de venda do Novo Banco. O maior projeto de habitação e serviços previsto para a Alameda das Antas, no lote abaixo, desenvolvido pelo escritório de arquitetura OODA, está apenas agora em vias de se cumprir.
Finalizados estão alguns equipamentos de zona mista, de habitação e comércio, a grande superfície comercial prevista (Centro Comercial Alameda, inicialmente chamado Dolce Vita, e ainda o Centro Educativo das Antas. Muitos lotes estão em fase de obras, mas há partes que ainda aguardam pela decisão pública para serem executadas, como é o caso do parque urbano previsto no PPA, o Parque Urbano das Antas.
Questionado se sente pena pelo facto de o Plano ainda não ter sido totalmente concretizado, Nuno Cardoso não o nega. Reconhece, contudo, que tudo tem o seu tempo e que “nos últimos 50 anos esta é a única área nova que a cidade construiu e é a grande área urbanística produzida de qualidade na cidade do Porto virada para o século XXI”.
“Agora, começou, finalmente, a construir-se aquela malha urbana. E ainda há muita construção para fazer, mas já se consegue perceber como será no futuro”.
O Plano de Pormenor das Antas tem sido desde 2004 um projeto ongoing, mas começa agora, finalmente, a cumprir-se. Novas infraestruturas e equipamentos que vão também servir a zona e associar-se ao estádio do Dragão - como uma nova linha de metro a ligar a Gondomar, o Matadouro ou o Terminal Intermodal de Campanhã - deverão elevar o processo de revitalização para outra escala.