Empresas “beneficiadas”, faturas perdidas e contas por pagar. Os 20 anos do CACE Cultural do Porto
Ana Francisca Gomes
Em 2022, as dúvidas e críticas ao funcionamento do CACE Cultural do Freixo, no Porto, levou o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) - que gere o espaço - a reconhecer a necessidade de se fazer um “levantamento exaustivo” da situação daquele acelerador de jovens empresas.
Uma auditoria interna ‘desenterrou’ um conjunto de irregularidades na permanência e nos apoios dados a cada uma das empresas, que foram sendo “grandemente beneficiadas” através de “recursos vários de excepcionalidades” e que não conseguiram cumprir o principal objetivo deste espaço - o de gerar emprego. Pelo meio, a equipa auditora não conseguiu descobrir quanto é que o IEFP pagou pelas obras nos terrenos e identificou rendas por cobrar a vários empresários, num "elevado prejuízo" para o Estado.
Do resultado dos 20 anos do CACE na cidade do Porto, a equipa auditora do IEFP não tem dúvidas: não só o objetivo da criação deste espaço “foi sendo desvirtuado ao longo do tempo” como o instituto do Estado “introduziu desequilíbrios à livre concorrência nos mercados de trabalho” ao beneficiar estes negócios.
Os Centros de Apoio à Criação de Emprego (CACE) foram criados pelo IEFP para ajudar empresas durante os seus primeiros três anos de vida. Mas apenas uma das dez empresas que fazem parte do CACE Cultural do Porto, que se instalou nos terrenos da Antiga Central Elétrica da EDP, em Campanhã, em 2003, ainda se encontra na fase embrionária. As restantes nove já há muito que usufruem deste local “protegido” da concorrência, usufruindo das benesses que ele oferece, ainda que já estejam numa fase consolidada da sua atividade económica.
Empresas puderam continuar a usufruir do espaço, apesar de não cumprirem regulamento
No início de 2023, o IEFP marcou reuniões informais com os vários empresários com espaços no Freixo, informando-os que deveriam sair até ao final de maio. Segundo o que alguns proprietários partilharam com o Porto Canal, apesar de estarem protegidos por contratos que os permitia ficar naquele espaço para além dessa data, o instituto terá alegado que estes documentos “não valiam nada” e que eram “ilegais”. O que terá motivado este aviso de ‘despejo’ prende-se com o grande número de irregularidades de cada uma das empresas que a equipa auditora do IEFP ‘desenterrou’.
Atualmente, nenhuma das dez cumpre os requisitos obrigatórios definidos pelo regulamento que estabelece as condições para permanecer naquele espaço.
Alguns dos incumprimentos podem ser mais difíceis de detectar, mas também a questão do tempo o IEFP ‘deixou passar’. Embora três anos seja o período contratualmente fixado para se permanecer no “ninho”, o IEFP foi renovando e assinando novos contratos com nove das dez empresas que permanecem no espaço.
A maioria das empresas permanecem no CACE há já oito anos, mas há quem usufrua do espaço há quase duas décadas.
Também a capacidade de gerar emprego - aquele que é o principal objetivo da atividade do IEFP - falhou na maioria dos casos. As empresas deveriam manter os postos de trabalho que diziam poder criar quando se candidataram ao ‘Ninho de Empresas’. Ainda assim há empresas que se mantiveram, ao longo dos anos, abaixo desse número e há quem tenha criado apenas um posto … o do próprio gerente.
As irregularidades não foram, contudo, surgindo apenas no tempo em que as empresas permaneciam no “ninho”. Também o momento em que se instalaram levantou dúvidas à equipa auditora.
Contratos para uns e contratos-promessa para outros
Dita o regulamento do CACE que os contratos celebrados com as empresas deveriam ser a título de comodato [um contrato que serve para alguém ‘emprestar’ algo com valor material a outra pessoa] e previam o pagamento despesas de manutenção e conservação. Contudo, não foi isso que aconteceu quando, em 2004, as empresas começaram a ‘aterrar’ no Freixo.
Usando como justificação algumas obras que ainda não tinham sido totalmente concluídas, o IEFP assinou contratos-promessa de comodato com os novos inquilinos. O Instituto do Emprego previa que os contratos definitivos fossem assinados no ano de 2005, quando os trabalhos estivessem concluídos.
O ‘senão’ destes contratos é que, enquanto não fossem celebrados os acordos definitivos, as empresas não eram “obrigadas ao pagamento dos encargos estipulados no regulamento do CACE”. A situação foi-se arrastando e a equipa auditora verificou que em 2015 o IEFP ainda assinava contratos-promessa … o que “resultou num elevado prejuízo para o IEFP, I.P. por dispensar empresas dos pagamentos devidos, durante um período elevado de tempo”.
Mas mesmo nos contratos-promessa, o IEFP deveria ter previsto o pagamento de uma ‘renda’... Existem, no entanto, evidências que com algumas empresas o IEFP assinou estes contratos sem ficar prevista “qualquer contrapartida financeira” para os novos investidores.
E se a equipa auditora já tinha encontrado dúvidas que ficaram por esclarecer, há mais uma ponta solta: em 2015, o IEFP já havia celebrado contratos definitivos com algumas das empresas, mantendo-se outras com contratos-promessa.
Não foi só a inconclusão das obras a justificação utilizada para terem sido celebrados contratos-promessa. É possível ainda recuar mais no tempo para encontrar precedentes num projeto que parecia estar destinado a correr mal.
Ver esta publicação no Instagram
IEFP financiou obras de requalificação e câmara instou-o a abandonar o espaço antes do tempo
Os terrenos da Antiga Central Eléctrica da EDP, onde hoje se encontra o CACE, foram cedidos pela Câmara do Porto ao IEFP em 2003, sendo que cabia ao instituto a responsabilidade pelas obras que o espaço necessitava.
O IEFP efetivamente financiou as obras de três lotes … mas não usufruiu do tempo que tinha para lá ficar e nem se sabe quanto gastou.
O contrato-promessa de comodato, assinado em fevereiro de 2003 entre o instituto e o município, formalizou a promessa de cedência dos terrenos. Neste documento, a que o Porto Canal teve acesso, a câmara prometeu ceder, após a assinatura do contrato definitivo, os terrenos ao IEFP durante, pelo menos, 30 anos (o que lhe permitiria ficar no espaço até 2033) e com a possibilidade do limite máximo ser até 60 anos (o correspondente a 2063).
Contudo, segundo a auditoria, no ano de 2018, a Câmara do Porto instou o IEFP a abandonar dois lotes para aí instalar uma extensão do Museu da Indústria. A câmara do Porto permitiu que num desses lotes (que estavam ocupados com serviços de gestão do IEFP) se fixasse o Teatro Experimental do Porto (TEP).
E ainda no ano de 2022 a Câmara notificou o IEFP para proceder à desocupação e entrega voluntárias do edifício onde se encontram as empresas que estava a apoiar.
Questionados pelo Porto Canal se o IEFP foi ou será “recompensado” pelas obras que financiou, o Município do Porto e o próprio Instituto do Emprego não responderam.
E relativamente aos custos destas obras, a equipa auditora não conseguiu encontrar evidências da quantidade de dinheiro que o IEFP investiu. Num protocolo assinado em 2001 ficou estabelecido um montante máximo de 120 mil contos (cerca de 600 mil euros) para as obras de adaptação necessárias. Não existem, contudo, registos do dinheiro.
O então diretor do CACE esclareceu que esta verba foi “paga por transferência para uma empresa municipal que efetuou a obra”.
Ainda assim, não ficam por aqui as ‘confusões’ inerentes ao processo de instalação. O Porto Canal pediu acesso ao documento que formalizou a cedência de terrenos da câmara para o instituto. O IEFP facultou apenas um contrato-promessa assinado em 2003 … porque a assinatura do contrato definitivo nunca chegou a ver a luz do dia.
Segundo o contrato-promessa, o contrato definitivo só viria a ser celebrado “no prazo de 30 dias” a contar da data em que o município conseguisse adquirir o lote onde está o CACE, que na altura pertencia à EDP. Mas isso não foi impeditivo para a Câmara do Porto e para o Instituto do Emprego, que permitiram que as empresas se instalassem nesse mesmo lote embora ainda não tivesse ingressado no património municipal.
Este assunto, escreve a equipa auditora, “foi várias vezes colocado ao Município do Porto, sendo que o último documento que consta do processo. datado de abril de 2014, refere que a ‘formalização do contrato-promessa de comodato ocorrerá aquando da emissão do alvará de loteamento, o que até à data não aconteceu’”.
Aquele terreno já é património da câmara desde, pelo menos, 2021. Nesse ano, o Município do Porto enviou ao IEFP uma “proposta de Protocolo” onde diz ser o “legítimo proprietário” da parcela daqueles terrenos em Campanhã que correspondem ao CACE. Assim, terá ficado “resolvido” o “constrangimento existente e que, aparentemente, conduziu à situação da existência dos contratos promessa”.
Contactada pelo Porto Canal, fonte da presidência esclareceu, contudo, que “o IEFP comunicou ao município que não queria renovar o protocolo”.
No verão de 2021, em reunião de executivo, a autarquia anunciou novos projetos que tinha para este seu espaço na Antiga Central Eléctrica do Freixo. Para além da nova extensão do Museu da Cidade (que será no lote que o IEFP já abandonou em 2018), foi anunciado que serão criados ateliês, espaços de ensaios e ainda uma ‘blackbox’.
As obras deveriam ter começado em 2022 e terem terminado este ano … mas nem uma pedra se mexeu. Já desde março que o Porto Canal tem questionado a câmara do Porto sobre o porquê deste atraso, mas sem receber uma resposta de volta.
Sabe agora o Porto Canal que, pelo menos até fevereiro de 2023, a Câmara do Porto não conseguia avançar com as obras porque os terrenos se encontravam hipotecados no valor de quase seis milhões de euros.
“Relativamente aos prédios privados municipais (lotes 24, 25 e Parcela E = CACE), temos a informar estarem em curso diligências municipais em vista ao seu aproveitamento urbano, sendo que estas se encontram condicionadas à anulação dos ónus (duas hipotecas no valor de 5.787.187,31 euros que garantem a realização das infraestruturas deste loteamento!) e atualização da inscrição conforme alvará de loteamento já publicado”, pode ler-se num parecer de fevereiro de 2023.
Questionado pelos motivos que levaram a que o terreno estivesse hipotecado, o município não respondeu.