17 anos depois, recordamos Gisberta, a transexual atirada para um poço por um grupo de menores no Porto
Leonor Hemsworth
No dia 22 de fevereiro de 2006, Gisberta, transexual de 45 anos, foi brutalmente assassinada, às mãos de 14 menores. 17 anos depois, o Porto Canal recorda a história trágica de Gisberta Salce Júnior.
Veio para Portugal com 20 anos, para fugir a uma vaga de homicídios a transexuais em São Paulo. Ironicamente, refugiou-se noutro país – aparentemente mais tranquilo – sem saber que seria este a conduzi-la ao fim que tanto temia e que a fez sair do seu país de origem.
Era conhecida como “a diva”. Loira, vistosa e espampanante, trabalhou em vários bares da cidade do Porto como transformista e era também trabalhadora do sexo. Carregava o peso das várias doenças que tinha: SIDA, tuberculose pulmonar, pneumonia e candidíase laríngea. As drogas também não ajudaram. "Passou de uma mulher muito bonita, glamorosa e a viver bem, para uma mulher que acabou já com roupas rasgadas, sem maquilhagem, já nem usava tacões, cortou o cabelo quase à rapaz, vestida à homem”, contou Nuno Câmara Lima, um enfermeiro que acompanhou Gisberta.
O desenrolar da sua vida levou-a mesmo a ficar sem-abrigo. O trabalho já não lhe dava dinheiro suficiente para sustentar uma casa, pelo que o seu último “lar” foi uma barraca por si construída, dentro de um edifício abandonado na Avenida Fernão Magalhães. E, ainda hoje, esse edifício continua a ser a principal marca do assassinato de Gisberta Salce Júnior.
As agressões que acabaram no poço
Fernando, Ivo e Flávio começaram, em 2005, a graffitar nesse mesmo edifício abandonado no Porto. Um dos rapazes apercebeu-se de que aquela sem abrigo era Gisberta, porque já se conheciam desde que Fernando tinha seis anos, e os três rapazes começaram a conversar com a imigrante brasileira e a visitá-la com maior frequência. Chegaram mesmo a levar-lhe comida por diversas vezes, depois de saberem todas as doenças e fragilidades de que Gisberta padecia.
O início da tragédia começou quando os três rapazes falaram da transexual aos colegas da Escola Augusto César Pires de Lima e da Oficina de São José, que acolhia 11 dos 14 rapazes, descrevendo-a como “um homem que “tinha mamas” e “parecia mesmo uma mulher”. Movidos pela curiosidade, aos três jovens juntaram-se mais onze, e as agressões a Gisberta começaram.
O óbito foi declarado a 22 de fevereiro, mas a imigrante já andava a ser maltratada pelos menores há vários dias. As agressões podiam tomar várias formas, desde espancamento com paus a apedrejamento, tendo chegado inclusive a pedir a Gisberta que se despisse para comprovarem que era um homem. No dia 21, na habitual visita de “porrada na Gi”, pensaram que a imigrante brasileira estava morta, e decidiram que no dia seguinte se iriam desfazer do corpo.
Logo pela manhã do dia 22, os jovens empurraram Gisberta para um poço com água. A vítima ficou submersa, mas, nesse momento, ainda estava viva. De acordo com o relatório da autópsia ao corpo, morreu por afogamento.
A morte de Gisberta trouxe a nu as fragilidades da comunidade transgénero que, ainda hoje e quase duas décadas depois, continua a ter uma longa luta pela frente, no caminho pela igualdade.