“Estive no fundo do poço”. Pessoas sem abrigo criam grupo de teatro para mostrar como é estar “do outro lado”
Porto Canal
O grupo nasceu da vontade de continuar a fazer teatro. Depois de várias oficinas de criação artística, apoiadas pela autarquia do Porto, os atores quiseram continuar a subir ao palco. “Do Lado de Fora” foi criado no final de 2022 por pessoas em risco de exclusão ou em situação de sem abrigo.
O ensaio, o primeiro desde que o grupo surgiu, começa com um momento de partilha. As cadeiras formam um círculo desencontrado que faz unir as histórias de todos eles. Todos. A Ana, o Artur ou o Emílio, partilham momentos que marcaram a semana ou o dia. “Esta semana participei numa palestra onde partilhei a minha história. No final foi muito bonito porque fui surpreendido com uma música da minha banda favorita”, conta um deles. A intenção é valorizar o que de positivo acontece, depois de tantas dificuldades que se atravessaram na vida.
Entre as recordações do que melhor aconteceu na semana, surge a mais bonita das revelações. O melhor presságio para o início do projeto. “Tive um senhor que me escreveu, que me mandou uma mensagem”, começa por contar Rui Spranger, diretor artístico do “Do Lado de Fora”. “Perguntou-me como tínhamos chegado ao nome do nosso grupo porque, há quatro anos, escreveu um conto sobre pessoas em situação de sem abrigo, precisamente com o título “Do Lado de Fora”. A surpresa foi geral, depois os sorrisos. Estava assim dado o arranque para o início do projeto.
Artur Fontes é um dos atores presentes na sala. Gesticula e move-se de um lado para o outro num dos exercícios de aquecimento. Dado o à vontade na dinâmica de grupo, percebe-se que já anda nisto há algum tempo. “A assistente social que me acompanha lançou-me o desafio de fazer uma oficina de teatro e aqui estou eu. É muito bom, ajudou-me muito a voltar a ganhar autoconfiança mas isto não é um processo linear, é uma batida cardíaca”, diz.
Artur refere-se aos altos e baixos da vida. O consumo de estupefacientes começou na adolescência, mas foi com a morte do pai que as coisas pioraram. “Fui mesmo ao fundo do poço, estive lá embaixo a rapar o tacho todo e ainda fiz um buraco. Estive do outro lado bastante tempo, mas estou a trabalhar para que a coisa melhore”, explica.
É a representar que surge o processo de superação. Uma vez por semana, Artur Fontes “deita cá para fora” os pensamentos perturbadores através do teatro. “Parece que estou a ganhar uma segunda vida, o grande problema é não existirem as segundas oportunidades. Uma vez que é assim, uma pessoa tenta integrar-se e recuperar através de coisas felizes”, explica.
Histórias idênticas repetem-se pela sala. Mais ou menos dramáticas, revelam cicatrizes da vida difíceis de sarar. “Maioritariamente somos compostos por pessoas em situação de exclusão social, para generalizar, pessoas que recebem o RSI, mas também temos pessoas que não têm nada a ver com isso. Aliás, hoje entrou mais gente nova, alguns estudantes ou recém-formados”, conta o diretor artístico do grupo. O objetivo é que o grupo seja aberto a todos, que contrarie a “guetificação”.
Rui Spranger é fundador da associação cultural e filantrópica “Apuro”, o “capacete institucional” que dá apoio ao “Do Lado de Fora”. Com a colaboração da Junta de Freguesia de Bonfim e com o apoio financeiro de um privado, é a associação que faz acontecer todo o projeto. “Temos um lado social e político muito presente. Pretendemos lutar contra o estigma através da arte e do teatro documental. Por outro lado, temos objetivos artísticos e queremos montar espetáculos de textos clássicos como atividade capacitadora”, explica.
A peça “É” foi o trabalho artístico que serviu de rampa de lançamento do projeto. Foi apresentado duas vezes, uma delas com a presença de Pedro Adão e Silva, Ministro da Cultura, quando esteve na cidade do Porto a conhecer o grupo. O “Do Lado de Fora” continua a somar participantes, três semanas depois do arranque já são mais de dez os atores a querer pisar o palco.
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