“Ter casa é tudo”. No Porto há 1339 pessoas em situação de sem-abrigo
Maria Abrantes
Os dados oficiais mais recentes revelam que, a 31 de dezembro de 2022, viviam 1339 pessoas em situação de sem-abrigo, na Área Metropolitana do Porto. 647 apenas na cidade do Porto. De acordo com dados oficiais, o número se sem-abrigo a nível nacional aumentou 78%, numa altura em que explode a crise na habitação e que acaba por empurrar centenas de pessoas para a rua.
Numa semana em que a chuva intensa tem atingido o país, o Porto Canal conversou com quem faz da rua a própria casa, embora sempre à espera de um teto.
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“Ter casa é tudo. É o que uma pessoa que está na rua deseja, é ter casa”. Disse-nos Rui, um homem de 45 anos, natural do Porto, cuja adição o arrastou para a rua há 12 anos. É ajudado pelos Serviços de Assistência Organizações de Maria (SAOM) e pelo Centro de Acolhimento Temporário Joaquim Urbano, onde, à semelhança de centenas de pessoas, toma algumas refeições. Apenas quando sente vontade ou quando o vício dá tréguas.
É aliás a realidade de centenas de pessoas da Área Metropolitana do Porto, ajudadas pelos restaurantes solidários que servem atualmente, uma média de 450 a 500 refeições por dia, apenas ao jantar.
“Ninguém morre à fome no Porto”, comentava o sr. Coelho e Helena, ambos a dormir na zona da Batalha. Apesar de notarem um acréscimo de pessoas a dormir na rua e em situações desfavoráveis, louvam o trabalho das equipas de rua e de associações como os “Anjos Amigos, que ajudam sempre e trazem refeições”.
Apesar do espírito de entreajuda e algum conformismo, o descrédito de algum dia virem a conseguir um teto para dormir é total. “Como é que a gente com 209€ vai ter um quarto? Um quarto aqui (no Porto), o mínimo são 350€”, lamentava o sr. Coelho, a viver do Rendimento Social de Inserção (RSI), enquanto Helena lamentava ter perdido a vaga num albergue, após ter sido internada no Hospital de Magalhães Lemos. “Vais para quartos, vais para as instituições, rua”. E é neste ciclo que, aos 30, vive desde os 18 anos.
Número de pessoas em situação de sem-abrigo aumentou 78% em quatro anos
Desde 2017 que a realidade tem aumentado exponencialmente em todo o país, mesmo em distritos, onde o fenómeno não era tão expressivo, até aos dias de hoje.
Ainda assim, é sobretudo nas grandes cidades do país, que se assiste ao aumento do número de sem-abrigo, sendo que a capital lidera a tabela, com a cidade do Porto a ocupar o segundo lugar.
De acordo com os dados oficiais, são já 10.773 as pessoas que se encontram a dormir na rua, em Portugal. O número contrasta com os 6.044 de 2018, o que representa um aumento de 78%, nos últimos quatro anos.
Ainda que os dados sejam expressivos, a realidade pode ser ainda mais avassaladora, tendo em conta que os números oficiais correspondem à contabilização feita até 31 de dezembro de 2022.
De acordo com o respetivo levantamento, o Porto registava o total de 647 Pessoas em Situação de Sem Abrigo (PSSA), das quais 73,6% sem casa (476 pessoas a viver em respostas sociais – apartamentos partilhados, centros de acolhimento temporário, estruturas residenciais e quartos de pensão), e 28,4% sem teto (171 pessoas). A Área Metropolitana do Porto (AMP) registava um total de 1.339 pessoas em situação de sem-abrigo.
Comparativamente ao ano de 2021, verifica-se uma diminuição de PSSA na cidade do Porto (11,4%) quer na condição de sem teto (26%), quer na condição de sem casa (4,6%), ou seja, sem teto menos 60 e sem casa menos 23.
Pobreza em Portugal faz parte das preocupações públicas do Presidente da República
Ainda que, em 2019, Marcelo Rebelo de Sousa tenha traçado o objetivo de tirar das ruas o máximo de pessoas possível, até 2023, chegados à data, não só se pode constatar que foi um plano falhado, como, ao contrário do que desejaria, o país regista agora mais 3.666 pessoas em situação de sem-abrigo, o que representa um aumento de 51%, desde as declarações do Presidente da República, em 2019.
A 17 de outubro deste ano, Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, o Presidente da República pediu ao Governo “novos modelos de ação” no combate à pobreza, para que seja possível assistir a uma redução “drástica” de sem-abrigo, até 2026. A nova meta fica traçada, num novo plano estratégico a ser implementado a partir de 2024.
"Daquilo que depender de nós - eu sei que o Governo está muito empenhado e a senhora ministra está muito empenhada e estas equipas são sensacionais - vamos fazer tudo para, até 2026, reduzir bastante o número", garantiu Marcelo Rebelo de Sousa, à margem de um encontro promovido pela Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA), no passado mês.
Os motivos apontados pelo Chefe de Estado
Ainda que reconheça que possa ser complicado acabar com situações de sem-abrigo, até 2026, o Presidente da República recua a 2019 e elenca alguns dos factos que considera terem levado à situação de pobreza que o país enfrenta: "Antes, em 2019, estava aquém dos 10.763. Agora, veio a guerra, veio este problema da habitação, veio o problema da inflação, que deitou para a rua muita gente de várias idades, obrigou-os a essa situação de sem-abrigo", afirmou o Chefe de Estado, no encontro promovido pelo ENIPSSA.
Mais recentemente, no passado dia 20 de outubro, Marcelo rebelo de Sousa ressalva, em entrevista ao Expresso da Manhã, que, embora o último recenseamento possa “pecar por defeito, o número de autarquias a divulgar dados é muito superior” e, portanto, “cada vez que há uma atualização, aumenta o número de sem-abrigo”, destacando positivamente o facto de haver mais câmaras envolvidas, que assumem tratar-se de um problema do poder local.
A última vaga de frio e as dormidas ao relento
No final de janeiro, a cidade do Porto registou uma vaga de frio com as temperaturas mínimas perto dos pressupostos para ativar o plano de contingência: três dias consecutivos com temperaturas abaixo dos 3ºC, critério definido junto do NPISA - Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo.
As temperaturas rondavam os 5ºC quando o Porto Canal saiu à rua para ouvir quem por lá dormia. Se numa primeira abordagem não revelavam sentir frio, com o desenrolar da conversa acabam por confessar que a última semana de janeiro estava a ser bastante dura, no que às baixas temperaturas dizia respeito.
O Porto Canal esteve em vários ‘spots’ da cidade, desde a Batalha, também na zona junto à Reitoria da Universidade do Porto, passando pela zona da Trindade. Leia a reportagem na íntegra aqui.