Desenterrados 350 corpos que vão ajudar a contar a história do Cerco do Porto
Ana Francisca Gomes e João Nogueira
“A partir do mundo dos mortos, conseguimos reconstruir um mundo dos vivos”. As palavras são da antropóloga Sofia Nogueira que está a dirigir as escavações arqueológicas num terreno anexo à Biblioteca Pública, no centro do Porto, que serviu como cemitério aquando do surto de cólera no decorrer do Cerco do Porto. Ao todo, já foram levantados mais de 350 corpos.
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No início deste século, já era desejo da Câmara do Porto renovar e ampliar a Biblioteca Pública Municipal, numa das principais avenidas da freguesia do Bonfim. E naqueles primeiros anos, foram mesmo feitas sondagens e escavações para preparar o terreno que no futuro vai ser a nova cara da biblioteca.
À data desses trabalhos, foram desenterrados 274 corpos do terreno que serviu de cemitério improvisado em 1832, no decurso do Cerco do Porto e após um surto de cólera. Mas era deixada uma certeza pelas equipas que por ali tinham passado: ainda havia história por ‘levantar’.
Os planos para a biblioteca pararam no tempo e, mais de 20 anos depois, foram retomados. O espaço municipal vai ser renovado e ampliado num projeto assinado pelo arquiteto Souto Moura.
Em preparação da empreitada e tendo conhecimento dos vestígios que já tinham sido capturados nos anos 2000, há equipas de arqueologia a trabalhar naquela parcela desde setembro.
A missão é deixar os terrenos limpos de qualquer contexto histórico, recuperando o máximo de informação dos elementos que o compõem. No fundo, “as intervenções são trabalhos preparativos para o arranque da obra na biblioteca”, explicou a antropóloga Sofia Nogueira.
Epidemia de cólera origina cemitério
É preciso voltar quase dois séculos atrás na história para perceber a origem do cemitério que está agora a ser levantado.
Fachada principal da igreja do antigo convento de Santo António da Cidade. Foto: Arquivo Histórico Municipal de Porto
Estamos em pleno Cerco do Porto, data de 1833, no contexto de uma “grande epidemia de cólera” que levou ao rei da altura, D. Pedro IV, por meio de um decreto, criar o cemitério face ao número elevado de mortes. “Teve como pressuposto a necessidade de solucionar uma calamidade”, explicou José Carvalho, arqueólogo e gestor dos trabalhos que estão em desenvolvimento do local, onde funcionou o antigo Convento de Santo António da Cidade.
Apesar do contexto de calamidade, o enterro dos corpos foi feito com o máximo cuidado. O cenário é prova disso: “Não há valas comuns (...)Temos indivíduos em caixão de madeira, temos outros que apenas são a mortalha. Nós encontramos os alfinetes, mas são todos colocados com cuidado com pronto, não há descuido nestes enterramentos”, contou Sofia Nogueira.
O cuidado foi elevado, mas o grau de conservação varia. Alguns dos restos mortais estão mais danificados por força de, durante alguns anos, ter ali funcionado um parque de estacionamento, por exemplo.
Mas os cadáveres permitem conclusões distintas e inéditas, até pela grande variedade e número: até agora, só na intervenção deste ano, já foram recuperados 61 corpos, “adultos e não adultos”.
“Temos treze indivíduos não adultos de todas as faixas etárias, desde o nascimento até à adolescência tardia. E nos indivíduos adultos em que foi possível diagnosticar o sexo, temos um equilíbrio entre o sexo feminino e o sexo masculino”, explicou a antropóloga da ERA Arqueologia, empresa responsável pela intervenção.
Mas se, por um lado, a história da cidade e as empreitadas anteriores ajudaram as equipas de arqueólogos a saber o que lhes esperava, por outro, trabalhar em ‘terreno virgem’ não deixa de ser um desbravar de mundo novo.
Num dos corpos, por exemplo, os arqueólogos recolheram botões de um fardamento em que se pode ler “The King” e um “G”. Será difícil ter a certeza, mas poderá tratar-se de uma associação ao Rei George e, por consequência, desvendar que ali foram enterrados soldados ingleses.
Vestígios de antiga igreja
Além dos vestígios no antigo parque de estacionamento, também estão a ser feitas escavações no interior da Biblioteca Pública Municipal.
Tratam-se de elementos de uma igreja que existiu no convento e que “acabou por ser demolida nos finais do século XIX”, explicou José Carvalho. O facto ainda não é totalmente confirmado, mas pela localização tudo indica que se trata de alicerces da estrutura do edificado religioso.
Obra da biblioteca não derrapou
A obra da Biblioteca Pública Municipal do Porto está projetada para três anos, num investimento superior a 26,5 milhões de euros.
Foto: Projeto de Renovação e Ampliação da Biblioteca Pública Municipal do Porto
A intervenção foi planeada já a ter em conta com a necessidade de atividade arqueológica no terreno e, por isso, os prazos “não derraparam”, garantiu Manuel Aranha, administrador e vice-presidente da GO Porto.
É aquela fração de terreno que vai ser a nova cara do edifício, estimando-se que só naquela parcela, de acordo com o projeto, se fixe um café, existam depósitos para os livros, uma biblioteca sonora e o gabinete da palavra.
Está apontado para fevereiro o fim da retirada dos vestígios. Assim que terminadas, a GO Porto estima arrancar com a empreitada em abril: “Neste momento estamos num procedimento de contratação que foi lançado no ano passado, em maio”, disse Manuel Aranha sobre o ponto de situação do concurso.