A capela que se "converteu" em alojamento local no Centro Histórico do Porto
Fábio Lopes
Em pleno coração do Centro Histórico da Invicta, salta à vista na silhueta portuense uma capela dessacralizada que deu lugar a um alojamento local, há cerca de quatro anos. A fachada preserva a vertente religiosa, ostentando uma cruz, mas o interior, outrora um espaço de culto, está agora transformado num vistoso T1, seguindo a tendência desta zona premium da cidade, a um passo de uma das mais emblemáticas e movimentadas artérias portuenses.
Na esquina das ruas do Ferraz e das Flores, oposta àquela onde se encontra a Casa da Companhia, está implantada a pequena capela privativa, paredes-meias com o edifício que serviu de residência à família nobre portuense, os Sousa e Silva, erigido no século XVI, e que foi, entretanto, reconvertido no empreendimento Flores 77.
Renomeado de “Porto Historic Luxury House”, após a intervenção que lhe deu nova cara, este é mais um dos muitos edifícios centenários do “velho” Porto, alguns ao abandono, que se têm transformado em unidades hoteleiras ou em qualquer serviço de alojamento temporário. O classicismo tomado pela contemporaneidade, à boleia do turismo.
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Raízes da capela
Reaberta ao público a 15 de novembro de 2020, a capela conta já com mais de quatro séculos, confundindo-se com a história da rua mais comercial do Porto, que ajudou a cidade a expandir-se para além da zona ribeirinha. Aberta em 1521 por ordem do Rei D. Manuel I, a Rua das Flores atraiu, desde logo, a nobreza para se começar a fixar no Porto, aproveitando o fim da prerrogativa que vigorava na cidade impedindo os nobres de se fixarem no burgo.
Nomes como os Cunha Pimentel, os Ferrazes Bravo ou os Sousa e Silva, que ali mandaram construir a casa da família, o edifício que hoje ostenta o número 77, da qual faz parte a história capela, definiram, desde logo, a riqueza que haveria de circular e caracterizar aquela artéria.
Estas construíram as suas residências, que se demarcavam das restantes casas de habitação pelo plano da sua fachada e pela pedra de armas, evidenciando o estatuto socioeconómico dos seus proprietários.
O edificado doméstico da cidade antiga, embora anónimo ou escasso em registos, constitui um repositório vivo de séculos de história, não apenas urbana e arquitetónica, mas também cultural, que vai escrevendo a história da cidade e acompanhando o seu desenvolvimento.
O passado da capela cuja fachada chama a atenção
A Casa dos Sousa e Silva, no século XVI, tinha já pertencido a Gaspar Ferraz, cavaleiro fidalgo da casa do duque de Bragança e provedor da Misericórdia e a seu filho Afonso Ferraz, chantre da Sé do Porto. A eles se deve a designação de Rua do Ferraz.
Antes disso, sabe-se que a propriedade terá sido construída nos domínios da Mitra (terrenos aforados), representando o conjunto de bens patrimoniais que estavam destinados ao sustento e provisão do Bispo.
Atualmente e como produto da reabilitação urbana do Porto, a casa, que sofreu várias mutações e teve vários usos ao longo das décadas, foi recentemente intervencionada, dando origem a treze habitações, incluindo a capela que faz parte do edifício.
Em entrevista ao Porto Canal, Cristina Couto Soares, que adquiriu e remodelou o edifício e a capela adjacentes viaja no tempo e relata a história do edifício, que está nas mãos da sua família desde meados do século XX.
“O meu avô comprou o edifício em 1945. O edifício esteve parado quase 50 anos. Em 2008 houve uma grande crise e, antes disso, todas as casas antigas estavam com alugueres baixíssimos, porque as rendas tinham ficado congeladas durante 50 anos. Os proprietários não podiam atualizar a renda, ou seja, esse edifício antes de ser reabilitado, estava muito degradado”.
Da autoria do gabinete de arquitetura AnarchLab, o edifício histórico foi reconvertido em 13 habitações únicas, todas diferenciadas, de tipologias T0 Mezzanine e T2, com áreas de 54 m2 a 127 m2, complementadas por pátios e terraços até 30 m2, tendo preços de venda situados entre os 260 mil e os 650 mil euros.
“Acho que o edifício já foi um hospital e um colégio também. Quando se fizeram as escavações arqueológicas, apurou-se que aquela zona tinha sido um hospital. Era o hospital da misericórdia, provavelmente, mas já foi colégio há cerca de 100 anos”, frisa Cristina Couto Soares sobre o centenário edifício numa das mais aclamadas zonas da cidade portuense.
Uma zona premium, que fazem com que o número 77 tenha vizinhos relevantes, como a Igreja da Misericórdia com a sua incontornável fachada barroca, bem como nas casas brasonadas quinhentistas, dos Brandões, dos Bravos e dos Sousas, bons testemunhos da residência nobre do Porto até ao final do século XIX.