“O meu trabalho é todo um bocadinho do Porto”. Desenhadora Ana Aragão distinguida com a medalha de mérito da cidade
Fábio Lopes
A arte corre-lhe nas veias desde tenra idade. Portuense de gema, Ana Aragão projeta a esferográfica cidades imaginárias como organismos vivos, com os olhos no real. Verdadeiras “anagrafias” urbanas, como as descreve, que representam um mar de narrativas e mapas mentais e emocionais, sempre com o ADN portuense como elemento diferenciador. A arquiteta reinventada como desenhadora dirige o seu próprio atelier no coração da Invicta desde 2012 e vai receber esta terça-feira a medalha de mérito da Câmara Municipal do Porto.
É no chão do seu atelier que faz a magia acontecer. Deitada horas a fio, Ana Aragão cria, a grande escala, mundos futuristas e ficcionais, através da ponta da sua caneta. Um portal entre diferentes realidades, numa simbiose perfeita entre o universo arquitectónico e a ilustração.
“Eu gosto muito de me chamar e de me intitular desenhadora, porque no fundo o que eu faço, tendo as suas raízes na arquitetura, é apenas o desenho de coisas que não existem”, frisa a artista.
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Arquitetura como ponto de partida
Um percurso profundamente marcado pela herança da formação académica, que norteia a sua obra. Formou-se em Arquitetura na FAUP, em 2009, contudo o seu trajeto não seria tão linear assim.
“Foi depois de eu testar a vida de arquiteta e ter percebido que se calhar não era a vida ideal para mim, que me foquei no desenho”. Ainda assim reconhece que o seu curto capítulo pela arquitetura lhe deu ferramentas para olhar o mundo e as cidades e o talento e a criatividade deram-lhe asas para que pudesse desenhar e soltar-se das cidades que existem e inventar mundos só dela.
“Comecei a trabalhar na sala de condomínio de casa da minha mãe, já adulta, mas foi uma coisa muito amadora que depois se tornou uma profissão e um percurso”, aponta.
Real e ilusão de mãos dadas
Foi aqui o ponto de partida da sua viagem em volta de arquiteturas imaginárias, através do papel. Cidades que flutuam e crescem numa verticalidade sem fim, desafiando a gravidade.
“Trago comigo das viagens que faço uma série de imagens, sobretudo das coisas menos polidas, da cidade mais crua, mais dura, o lado mais urbano da cidade”, sublinha. Ainda assim, recusa o rótulo de “repórter visual”, uma vez que a sua relação com a veracidade não é total, esfumando-se rumo à ilusão que impregna nos seus trabalhos.
“Quando viajo ou passeio, acabo por trazer essas informações todas contidas numa máquina de memória que faz alguma espécie de centrifugação e depois distribui tudo quando eu estou no momento de desenhar”, vinca a artista.
Em cada rabisco, uma narrativa
Rabiscos que parecem ter vida própria, mas nos quais são invocadas memórias, narrativas, labirintos pessoais e sociais, que mais do que contar histórias de edifícios, pretendem refletir histórias dos seus habitantes e a própria dinâmica e o pulsar das cidades por onde passa.
“Foi algo que me ficou da FAUP, do curso de Arquitetura e desta tradição portuense da relação da obra com o sítio, e ainda trago e transporto isso para o meu trabalho”, defende.
Ana Aragão defende que os espaços habitados com a imaginação podem ser tão poderosos como os físicos.
“Há quem diga que a arquitetura são os espaços construídos no espaço nos quais nós habitamos, nós enquanto corpo sensorial, mas também há uma componente de ilusão nas nossas vivências”.
A artista acrescenta que “há um lado que não é mensurável, que também importa trazer para cima da mesa, para a discussão”, defende.
Assim, a arte é um escape, uma janela aberta a outros mundos, lugares, espaços e tempos. É sobre esta premissa que assenta o trabalho de Ana Aragão.
“Há uma matemática, um xadrez, uma mecânica” no desenho
A obsessão do pormenor percorre toda a sua obra. A cada traço, um olhar meticuloso, um rabisco feito a caneta, que não permite anular ou voltar atrás, obrigando a saber lidar com o erro.
“É um trabalho de muito critério, de muita delicadeza também, mas ao mesmo tempo de risco enorme, porque a partir do momento em que eu faço aquele risco, eu já não posso voltar atrás”.
“Estou sempre numa bifurcação e escolho sempre a linha seguinte e a partir da linha seguinte estou novamente numa bifurcação e escolho a linha seguinte. Portanto é um conjunto de decisões. Há uma matemática, há um xadrez, uma mecânica, aquilo que lhe queiramos chamar, no desenho, que é fascinante e que me apaixona”, acrescenta.
Porto, a ‘musa’ de Ana Aragão
Natural do Porto, Ana Aragão é uma confessa apaixonada pela Invicta, cidade que marca e influencia todo o seu trabalho.
“O Porto é a cidade onde eu nasci, cresci, vivi a minha vida praticamente toda aqui no Porto, por isso o meu trabalho é todo um bocadinho do Porto, é incontornável”, sublinha.
A desenhadora vinca a diversidade identitária que inunda a cidade à beira rio plantada e que lhe serve de inspiração.
“Todos os bairros têm uma identidade própria, todas as zonas têm coisas a acontecer que são completamente diferentes, é tão diversificada e dinâmica, aponta.
“Se eu quiser ficar a vida toda aqui no Porto consigo encontrar coisas novas todos os dias e podia viver mil anos que não era possível cansar-me, nem esgotar”, frisa a artista.
Ana Aragão recorda Italo Calvino e defende o desenho da sua cidade com linhas sinuosas, realçando as paisagens estonteantes da cidade que a viu nascer.
“Há muitas formas de pensar em desenhar o Porto. No outro dia ouvi uma expressão muito bonita que dizia que o “Porto não precisa de skyline”, porque já tem um natural skyline lindíssimo e muito poético. É um pouco clichê, mas na minha cabeça tem o Porto uma linha que divide aquilo que é construído do céu extraordinária”, sustenta a artista.
Reconhecida como uma das mais importantes ilustradoras e desenhadoras portuguesas, é com “orgulho” que Ana Aragão recorda o trajeto traçado até aqui.
“É um trabalho muito solitário e é um universo com as suas especificidades. O meu pensamento é sempre: o próximo projeto tem de ser melhor do que o anterior”, assegura a artista.
Um caminho consistente, mas custoso até ao estrelato, nacional e além-fronteiras, que lhe vale agora a atribuição da medalha de honra da cidade do Porto.
“Quando fui o ano passado expor no Japão e mesmo quando expus em Macau há uns anos, levo sempre um vídeo de apresentação, E levo sempre imagens do Porto associadas, porque estamos no coração da cidade, é daqui que parte tudo. Se eu não levasse o Porto, eu não me levava a mim também”, remata.
Alguns dos seus projetos mais recentes incluem a participação na Representação Portuguesa na edição 2014 da Bienal de Veneza, a sua seleção pelo Arquivo de Luerzer como um dos “200 Melhores Ilustradores do Mundo” (2014), estando ainda representada nas coleções do Centro Cultural de Belém, da Fundação Oriente Macau e da Fundação do Oriente Portugal.
Um talento portuense que continuará a levar o encanto da Invicta além-fronteiras.