“Era cliente assíduo” da PIDE. O último preso político a ser libertado no Porto vai receber medalha da cidade

“Era cliente assíduo” da PIDE. O último preso político a ser libertado no Porto vai receber medalha da cidade
| Porto
Alexandre Matos

Uma vida de luta contra injustiças vai agora ser reconhecida pela cidade do Porto. Jorge Carvalho, também conhecido como ‘Pisco’, foi o último preso político a ser libertado das instalações portuenses da PIDE no seguimento do 25 de abril. Nem se lembra de quantas vezes foi preso - “foram tantas” -, mas garante que “hoje, faria tudo exatamente igual”. Recebe esta terça-feira a medalha de mérito da Câmara Municipal do Porto.

Jorge Carvalho para uns, ‘Pisco’ para outros, “cliente assíduo” para a PIDE. A vida do resistente antifascista de 77 anos dava um livro, que até já lhe pediram para escrever, garante, ainda que tenha sempre recusado.

“Inquieto e revoltado”, é assim que Jorge se autocaracteriza. Fazia parte de um grupo de jovens que se opunha frontalmente ao regime ditatorial que se vivia em Portugal antes do 25 de abril.

“A nossa ideia era lutar contra as injustiças que havia no país, nomeadamente a guerra colonial”, conta ‘Pisco’ ao Porto Canal, numa entrevista concedida numa das celas onde tanto tempo passou nas antigas instalações da PIDE/DGS na cidade, que hoje alberga o Museu Militar do Porto.

 
 
 
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Uma condição nos dedos da mão absolveu-o de ir para a tropa, “mas também não ia, teria fugido como muitos amigos meus fugiram”, garante.

Nós combatíamos muito a guerra colonial. Com cartazes, com propaganda. Os cartazes não valiam de muito que passado pouco tempo a PIDE ia lá e tirava-os”, salienta Jorge, que referiu várias vezes que a oposição à guerra era mesmo, à época, a luta mais importante que travava.

Essa foi uma luta que começou a ser mais notória, no caso de Jorge, a partir de 1969, quando se tornou militante no (clandestino) Partido Comunista Português. E rapidamente se tornou uma das caras mais relevantes em Matosinhos e no Porto na luta contra o fascismo.

Cada discurso que fazia tinha que fugir”, confessa. “Cinco dias antes do 1.º de maio, do 5 de outubro, do 31 de janeiro, eu tinha que fugir. Eu sabia que me iam buscar a casa, para eu não ter interferência nesses dias”, referindo-se à polícia política.

Questionado sobre se já era uma pessoa sinalizada pela PIDE, Jorge Carvalho diz com risos pelo meio. “Sim, sim. Eu já era cliente assíduo aqui da casa”.

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Agora consegue encontrar algum humor na situação que viveu, mas nem por isso são boas as memórias desses tempos. “Aquilo era muito brutal”, responde, já com outro tom na voz, sobre como era ser preso naquelas instalações.

 

“Tenho memórias péssimas deste edifício”

Lembra especialmente a tortura do sono - quando regressava à cela após o interrogatório e a cama havia sido retirada - e a tortura da estátua - quando tinha que ficar de pé, imóvel, sem sequer se poder coçar durante horas, com um agente da PIDE atrás preparado para “dar uma bastonada” ao sinal de qualquer movimento.

Sobre a última, tem uma história que gosta muito de contar. Uma vez, conheceu “um PIDE bom”, brinca.

“Eu mexi-me, cocei-me, olhei para trás e ele só escorria água. Perguntei-lhe se estava tudo bem, e ele disse que sim e perguntou-me de volta. Eu disse, ‘olhe, eu não estou bem, preciso de ir à casa de banho’. Não precisava, claro, só precisava de descansar. Passado um tempo ele vai lá bater à porta perguntar se ia demorar, que o colega dele estava a chegar. Ainda consegui descansar um belo bocado”, diz entre risos.

Mas claro, nem todos eram tão perdulários. Jorge também se recorda de um que “obrigava a ficar de braços abertos”, sempre pronto para brutalmente agredir os presos ao mais pequeno movimento.

Quando subia as escadas que ligam as celas às antigas salas de interrogatório, o pensamento de ‘Pisco’ era só um: “sabia para o que ia, não sabia como vinha”, repetiu várias vezes.

Perdeu a conta à quantidade de vezes que passou tempo atrás das grades no edifício na Rua do Heroísmo - “foram tantas”. O período mais longo aconteceu em 1971, quando esteve um ano e quatro meses preso.

Mas de todas as vezes, a primeira não se esquece.

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“Na minha primeira ida à PIDE eu portei-me muito mal. O PIDE fazia-me uma pergunta e eu ficava meia hora a responder. ‘Você não tem filhos? Gostava que o seu filho fosse para a guerra?’ e isso não se devia fazer, eu tinha que me conter, mas eu não me contia. cada pergunta do PIDE revoltava-me.”, conta.

Mais tarde, foi chamado à atenção por outros ativistas antifascistas e ofereceram-lhe um livro com o título “Se fores preso, camarada”, que incentivava os detidos a terem contenção nos interrogatórios, de forma a evitar escaladas de violência.

Mas nem o sofrimento de que era alvo de cada vez que era preso abrandava o espírito revolucionário de Jorge Carvalho. Na altura “quando nós tínhamos uma ideia, ou duas uma, ou a abandonávamos, ou ficávamos à margem. E a nossa ideia era aquela. Lutar contra as injustiças que haviam no país, nomeadamente a guerra colonial e a pobreza”.

E por isso mesmo, sempre que regressava à “liberdade”, que de liberdade tinha pouco, voltava às manifestações anti-regime.

Lembra-se de uma vez, antes de um protesto na Avenida dos Aliados, que o núcleo onde militava andou semanas a treinar, numa salinha na Rua do Almada, uma ação para combater a polícia. “Treinamos subir a avenida todos juntos, a segurar uma vara à nossa frente para impedir a resposta policial”.

Mas quando chegou o momento da verdade, ao subir os Aliados, e vendo o corpo policial a descer, olhou para os lados e já era o único a segurar na vara. “Ainda a atirei contra eles e tentei fugir, mas não adiantou nada. Apanhei logo uma coça do caraças”.

“Ainda tenho aqui a cabeça torta, não sei se era das pancadas que levava”, ri-se.

O 25 de abril pelo olhar de um preso político

A última vez que foi preso foi a 2 de abril de 1974, poucas semanas antes do Dia da Liberdade. Diz que “acompanhava mais ou menos que a malta se preparava para fazer uma revolução”, mas que foi na mesma uma “noite de loucura”.

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“Eu estava a dormir, e começo a ouvir: ‘morte à PIDE e a quem apoiar’. Eu acordei e achei que estava maluco”, confessa.

Mas conforme as horas iam passando, “o povo ia engrossando e aquele barulho ia entrando pela sala adentro”, diz, incrédulo. “Era mesmo ‘morte à PIDE e a quem apoiar’. Eu bati à porta e um guarda diz-me que era um grupo de estudantes e para não me preocupar, mas eu fiquei logo desconfiado”.

Começou a tentar falar com os outros presos, quando alguém lhe diz que leu num jornal pela janela que era um golpe de estado, que tinha sido feito pelo Spínola. “Agora é que nunca mais saímos daqui então, estamos tramados”, pensou Jorge.

Já no dia 26 de abril, entram a meio da manhã na cela de ‘Pisco’ um agente da PIDE com um Polícia Militar. “Apanhei um susto do caraças a achar que me vinham buscar para ir para a tropa”. Mas o soldado acalmou-o, e mais tarde apareceu outro militar que Jorge conhecia, e que pediu ao comandante para o deixar sair da cela. “Comecei logo a beber cerveja pela manhã”.

E com os manifestantes que se reuniam na Rua do Heroísmo a exigir a libertação dos presos, os militares pediram a Jorge que fosse falar à varanda do edifício para acalmar os ânimos, com medo que uma invasão se seguisse.

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Mas quando chegou à varanda viu que “não eram meia-dúzia de estudantes, mas sim uma multidão”. Nem conseguiu falar. “Nessa situação uma pessoa até perde a força”, conta, com a voz a esmorecer.

Questionado sobre o que sentiu nesse momento, Jorge tem poucas palavras. “Calcula, não é? Estar preso e ter milhares de pessoas à porta…”

“Sabe que uma pessoa estando aqui presa, quando sente a liberdade… uma pessoa pensa ‘valeu a pena ter lutado’”.

Jorge Carvalho ‘Pisco’ foi oficialmente libertado nesse mesmo dia, a 26 de abril de 1974. Os dias seguintes seriam passados em casa, altura em que alguém lhe terá dito: “Jorge, vai lá fora que tens gente que quer falar contigo”, conta. “A forma como as pessoas tinham para me agradecer era vir à minha casa”.

Não é fácil para Jorge falar do presente. “Que valeu a pena valeu, mas não se fez justiça por todos aqueles que lutaram por liberdade. Não fui só eu. Foram milhares que lutaram pela liberdade. E a maior parte deles não foram reconhecidos”.

Jorge é um dos rostos reconhecidos pelo público como símbolo da resistência antifascista na cidade do Porto. O facto de ter sido o último preso político a ser libertado acabou por lhe dar essa exposição pública que tem agora como consequência a atribuição da Medalha de Honra pela autarquia portuense.

E Jorge admite que sente essa responsabilidade. “Acho que honrei a cidade. Mas não só o Porto, também todos aqueles militantes que lutavam contra as injustiças”.

‘Pisco’ não tem arrependimentos. “Hoje, faria tudo igual. Se fosse justo, faria”.

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