Sob ditadura “o São João era a única noite em que a cidade do Porto era nossa”

Sob ditadura “o São João era a única noite em que a cidade do Porto era nossa”
Rua Sá da Bandeira, 1973 | Foto: Porto Desaparecido
| Porto
Ana Francisca Gomes

Nos 50 anos do 25 de Abril de 1974, recuamos no tempo para ilustrar como nem as amarras da ditadura foram capazes de travar as celebrações da noite de São João no Porto - a mais longa do ano. Como é que os portuenses saíam à rua numa altura em que os ajuntamentos eram proibidos pela PIDE? Como é que a Invicta celebrava durante os anos de repressão? “No São João os portuenses não ligavam à ditadura. A cidade perdia a cabeça nessa noite e extravasava todas as suas ânsias, angústias e recalcamentos, que se acumulavam durante o ano”, conta ao Porto Canal o historiador Hélder Pacheco.

 

 
 
 
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No número 583 da Avenida da Boavista não é possível ver, este ano, a instalação das diversões que anunciam a chegada do São João. As obras que prometem revolucionar a mobilidade na cidade impediram a instalação na rotunda das habituais tasquinhas e divertimentos da época. Mas é aí que Palmira Peixoto, de 68 anos, recorda como o Porto “emergiu da noite e do silêncio” com a queda da ditadura.

“A principal diferença que senti depois do 25 de Abril de 1974 foi, desde logo, podermo-nos apoderar da cidade - que até aí não era para nós”, explica a mulher a quem o subdesenvolvimento do país obrigou a trabalhar logo a partir dos seus 12 anos.

Numa altura em que o regime ditava a proibição de reunião de mais de três pessoas, ao povo sobravam os dias de celebração. “Tínhamos uma cidade, mas não podíamos estar em grupos, a brincar ou coisa que lhe valha. A única coisa que tínhamos era o São João. E mesmo isso, muito vigiado!”, diz-nos, num esforço por uma memória que não quer perder.

“O regime tinha um medo incrível quando o povo se juntava”, mas a noite de São João - de 23 para 24 de junho - surgia como um dia diferente no ano dos portuenses.

Para Palmira, o São João era “um dia de escape”. Uma noite em que as pessoas, “aparentemente, eram todas livres”. Aquela, acredita, “era uma forma de o regime dizer “pronto, aquilo que eles acumulam durante o ano deixa-os expurgar naquela noite. Vigiados sempre, mas permitam que uma vez no ano a gente pudesse ocupar as ruas todas da cidade. Depois no resto do ano... chapéu”.

Liberdade ditada pelo género de cada um

Mesmo sendo a noite de São João a mais livre da altura… não o era para todos. O contexto de celebração não amenizava o papel dominador dos homens e uma vida de obediência a que as mulheres eram reduzidas.

Quem o diz é Lurdes Rocha, nascida junto à Sé do Porto, que recorda como para as raparigas era mais difícil sair. “Quanto mais ficar uma noite fora de casa…”.

“[O São João] era um dia completamente diferente, e para alguns era o único dia de liberdade, onde se podiam juntar com os amigos”, reconhece a portuense de 68 anos, “mas isto não quer dizer que fosse toda a gente”.

A consciência política só surgiria mais tarde, já depois de Abril. Mas Lurdes não esquece a desigualdade de género castradora da época, de como “a maior parte das raparigas ou iam acompanhadas por familiares ao São João, ou não iam”. Não que fosse o seu caso, que à semelhança das amigas “sempre foi muito rebelde”.

“Eu gostava muito de ir aos bailaricos, mesmo sendo criticada por um conjunto de pessoas que não aceitavam esse tipo de situação. Tinha amigas que não conseguiam e outras que, por rebeldia, enfrentavam os pais. Mesmo em dia de festa era evidente o facto de não termos os mesmo direitos.”

“Vamos acabar com o ditador”

Embora a PIDE não deixasse de vigiar as pessoas nessa noite, havia quem “aproveitasse para fazer propaganda”, recorda Lourdes com um brilho no olhar.

Nesta que é uma conversa no Centro de Trabalhos do Porto do Partido Comunista Português, David (nome usado em clandestinidade) chega com um conjunto de panfletos. “É disto que a Lurdes vos fala”.

“Noite de S. João! Noite de Manifestação
(...)
Para derrubar Salazar
Toda a gente empurra e chuta
É um gosto dar um biqueiro
Em tal filho da …”

Estes são alguns versos que se podem ler num dos panfletos que consta do arquivo histórico do partido. David, a quem a vida numa ilha precária “fez campo de cultura”, explica que nessa noite eram distribuídas quadras de São João contra Salazar. “Sem alegorias ao partido, para que fosse uma coisa aberta para todos”.

Porto Canal

Os panfletos fazem parte da Organização Regional do Porto do PCP. Foto: Ana Francisca Gomes | Porto Canal

“Sempre que se juntavam pessoas, era desculpa para se distribuir propaganda”, conta o homem de 77 anos. Mas sempre com cautela já que nunca deixou de se sentir vigiado. “A malta divertia-se, cantava e dançava, mas lembro-me de um São João em 72 ou 73 em que houve camaradas a ser detidos por serem apanhados”.

Sobre a luta do partido, o comunista recorda um ano em que vestiram um porco de Américo Tomás e o soltaram nos Aliados, a propósito de uma visita do então Presidente da República à cidade em vésperas de São João. O que aconteceu ao porco? “Não sabemos, lá alguém o deve ter apanhado”.

“Era uma catarse coletiva”

É no seu escritório, rodeado de estória(s) da cidade contada em livros, que o professor e historiador Hélder Pacheco explica ao Porto Canal que a ditadura não existia para os portuenses em noite de São João. Até porque, conta, “seria muito difícil conter as milhares de pessoas que vinham para a rua”.

Porto Canal

Hélder Pacheco é um dos poucos historiadores a estudar academicamente o São João do Porto. Foto: Alexandre Matos | Porto Canal

“A noitada era um divertimento coletivo e a cidade, que normalmente era sisuda e que trabalhava muito, positivamente perdia a cabeça na noite de São João e extravasava todas as suas ânsias, angústias, recalcamentos etc. O São João era para expurgar todas as impurezas acumuladas durante o ano, era uma catarse coletiva”, recorda o cronista das culturas e tradições populares da Invicta.

O portuense nascido na antiga freguesia da Vitória, nos anos 30, garante nunca ter sentido um ambiente de repressão. “Nessa noite a palavra de ordem era gozar a noite o mais possível”. Aliás, a noite era de “seita” para os rapazes, que em grupos andavam “a dar com os alhos nas cabeças das senhoras e raparigas”. Já essas, reconhece, divertiam-se “de uma forma mais contida”.

As “prendas” de São João, nove meses depois

Foi em 2004 que o historiador lançou em livro os dados recolhidos desde 1984 sobre esta festividade. E também no seu “Porto - O Livro do S. João” é retratada a euforia e excessos da época, cujas consequências por vezes só eram conhecidas alguns meses mais tarde.

“Para o livro falei com um médico que me disse que nove meses depois havia um aumento do número de nascimentos no hospital. O que quer dizer que a noite também se prestava clandestinamente porque os bons costumes cobriam isso”.

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