Teimoso, assustadoramente honesto, prussiano e pistoleiro. Este é o perfil do reitor António de Sousa Pereira

Teimoso, assustadoramente honesto, prussiano e pistoleiro. Este é o perfil do reitor António de Sousa Pereira
| Porto
Francisco Graça

“É o reitor das universidades em Portugal. É o reitor dos reitores?”. “Nem se atreva a chamar-me isso - o ego dos professores universitários, e dos reitores, é um bem delicado”.

A resposta desassombrada e cortante de António de Sousa Pereira é o retrato psicológico de um homem que há décadas percorre os corredores da gestão académica, que lida com personalidades fortes de professores doutores habituados ao assentimento e com um elevado grau de vaidade. Há tensões, o próprio o admite, há resoluções difíceis e há zangas. E há avanços, conquistas e momentos de regozijo.

António de Sousa Pereira é reitor da Universidade do Porto desde 2018. Foi reeleito para um segundo mandato de quatro anos em maio de 2022. Antes, e durante 14 anos, foi diretor do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS). Desde 2020, é também presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP). António de Sousa Pereira é, para todos os efeitos, reitor dos reitores, mesmo que não se possa dizer.

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António de Sousa Pereira é o reitor da Universidade do Porto desde 2018. Foi reeleito para um segundo mandato de quatro anos em maio de 2022 (Imagem: Pedro Soares)

A entrevista é marcada para o gabinete do reitor. Se é trabalho, é no gabinete. O homem é alto, de ombros largos e voz lenta. “Então diga-me lá o que é que querem”.

Uma infância (e um sequestro) em Gondomar

“Nasci a 17 de outubro de 1961 e vivi em Ramalde até aos três anos. Depois, voltámos para Gondomar, porque a minha mãe era de Fânzeres e o meu pai de São Pedro da Cova”. Começa assim a história de Sousa Pereira, que se lembra de um concelho rural, pobre, e uma vida, senão dura, pelo menos esforçada.

A minha mãe era tecedeira, e o meu pai era pintor de automóveis. Eu próprio trabalho desde que me lembro, desde os 11, 12 anos de idade. Trabalhei primeiro numa metalúrgica e depois, mais tarde e durante as férias, na AutoSueco. Naquela altura, os anos letivos começavam sempre com atrasos, tradicionalmente apenas em janeiro. Por isso, dava para trabalhar meio ano e no outro “meio” estudava. Nunca me faltou absolutamente nada, mas também nunca houve a fartura que eu via nos outros colegas”.

Nesses anos, a biblioteca da Fundação Gulbenkian de Fânzeres tornou-se no único luxo a que se dava. A cada fim de semana, Sousa Pereira levava meia dúzia de livros para casa, que devolvia no fim de semana seguinte a troco de mais meia dúzia. ”Eu devorava aqueles livros pá”, ri-se pela primeira vez.

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António de Sousa Pereira lembra-se de uma infância sem luxos, a trabalhar numa metalúrgica desde os 11, 12 anos de idade. A filosofia de trabalho ficou desde sempre (Imagem: Pedro Soares)

Depois, houve um sequestro. Se é que se pode chamar assim. “Quando andava na terceira classe, por altura do Carnaval, pegaram em mim, tiraram-me da sala, trouxeram-me para o Porto numa carrinha qualquer. Num sítio que já não me lembro fizeram-me um interrogatório, tive uma espécie de teste de escrita. Depois, carrinha outra vez e voltei para Fânzeres”. Quem eram, o que queriam? “Não sei, alguém me referenciou e comunicou às autoridades. Quando cheguei à escola informaram-me que já não estava na terceira classe, mas sim na quarta. E saltei um ano”.

O destino académico ficou traçado. Pouco depois saiu para o liceu Alexandre Herculano, no Porto, porque em Gondomar “era a Escola Industrial”. E de seguida a Faculdade de Medicina. Tudo se precipitou.

Uma personalidade difícil

Cartas na mesa. “Falámos com colegas do Sr. Reitor antes da entrevista, caracterizam-no como teimoso, assustadoramente honesto, excessivamente assertivo e até bruto. É?”. “Não… Epá, talvez”, e uma gargalhada a pontuar a admissão.

É verdade que, num daqueles questionários de verão feitos por jornais em desespero de silly season, terá respondido que a divisa pessoal era “Aquila Non Capit Muscas” - uma águia não caça moscas. A apresentação podia estar feita.

"Há aí um pormenor que talvez tenha alguma influência. A minha família, do lado do meu pai, é descendente dos alemães que vieram da Prússia para São Pedro da Cova. Quando se começou a exploração de carvão foram buscar técnicos na Alemanha com experiência na área e alguns acabaram por ficar por cá, deixar descendência. E portanto, os meus trisavós eram prussianos. Sou um Damart. Talvez venha daí o meu porte germânico”, e mais uma gargalhada, compassada, alemã. “Sou um pistoleiro”.

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É adepto do FC Porto, mas não perde o sono por desporto de equipas. "Sempre gostei da competição connosco próprio, de desafiar os nossos limites. Primeiro foi o xadrez, depois apaixonei-me pelo tiro" (Imagem: Pedro Soares)

Não se percebe à primeira, mas António de Sousa Pereira explica. O reitor é, literalmente, pistoleiro. Carreira numa carreira de tiro não fez, mas foi atirador federado. Lá para os 30 anos de idade acumulava a docência, clínica geral e doutoramento, e a necessidade de disparar tornou-se natural. Encontrou uma carreira de tiro no quartel da Serra do Pilar e apaixonou-se. Fechava-se ao fim de semana e relaxava. E disparava. O desporto era como gostava, diz. Solitário, num esforço próprio de concentração e foco, longe dos desportos de equipa que, assumidamente, não gosta.

Ao mesmo tempo começou a procurar máquinas fotográficas, analógicas, modelos clássicos alemães, como os trisavós. Ia a feiras, falava com colecionadores, procurava em revistas e jornais por Leicas e Rolleiflex, as preferidas. E foi organizando um pequeno espólio, depois maior, até chegar a mais de 150 modelos. A preferida é uma Leica IIIc com a cortina do obturador vermelha, feita no início dos anos 40 à revelia da marca especificamente para a polícia política nazi Gestapo e “negociada” por um amigo em Hamburgo na década de 90.

Como gerir pessoas e acabar amizades

“Deixe-me lá voltar àquela questão da frontalidade”, pede o reitor.

“Nós, em Portugal, temos muita dificuldade em olhar alguém na cara e dizer-lhe que errou. E eu acho que isso não tem problema nenhum. Errou, errou, pronto, acabou. E outra coisa que temos dificuldade é em separar o profissional do pessoal, nós somos emocionais e personalizamos estas questões. Quando eu peço a alguém para trabalhar com uma pessoa de quem não se gosta, as pessoas têm de perceber que não vão passar férias nem vão para os copos. Para passar férias e copos, essa pessoa é que escolhe. Para trabalhar…”, o “escolho eu” ficou por dizer no final da frase.

Já houve pessoas que ficaram ressentidas? “Claramente que sim. Para mim não há problema. Se eu despeço alguém, se eu demito alguém, é por razões profissionais e até fico espantado quando essas pessoas entendem isso como algo pessoal”.

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Amizades em causa pelo cargo que ocupa? "Não posso arriscar perder eficácia enquanto gestor por questões de natureza pessoal. As pessoas não entendem isso" (Imagem: Pedro Soares)

“Lembro-me quando fui para diretor do ICBAS, a primeira pessoa que tive de desautorizar foi o meu melhor amigo na altura. Houve um problema e eu tive de fazer uma desautorização pública. Eu acho que até hoje ele ainda não me perdoou”.

António de Sousa Pereira inclina-se na cadeira. “Entenda bem”. “Se eu tivesse cedido naquela altura tinha liquidado a minha carreira, nunca mais ninguém me levava a sério. Se eu tivesse perdoado a um indivíduo uma coisa que não perdoaria a mais ninguém só porque ele era meu amigo... As pessoas não compreendem, mas quando se está num cargo desses não se pode vacilar”.

A universidade far-se-á na sala de convívio

“Para que servem os currículos na universidade?”, a pergunta de António de Sousa Pereira é uma provocação, mas é com picardias e com piscares de olho que o reitor puxa pelos assuntos que lhe interessam.

“É alguma estultícia acharmos que o currículo que desenhamos para um determinado curso é o melhor. Pegamos no mesmo curso em meia dúzia de faculdades diferentes, até cursos em áreas mais conservadoras e com um núcleo de conhecimentos mais estabilizado, e temos meia dúzia de currículos diferentes, e eu não acho que sejam uns melhores do que os outros, são diferentes”.

Para Sousa Pereira, a academia do futuro coloca a liberdade nas mãos dos estudantes para escolherem as próprias cadeiras, com cursos sem currículos definidos, com tutores que orientam “levemente” os estudantes, como se estivéssemos em Oxford ou Cambridge. Uma academia em que estudantes de medicina tenham aulas de poesia e em que engenheiros discutam filosofia.

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Sumários obrigatórios em aulas da faculdade é uma coisa absurda, os estudantes precisam de aprender a pensar e a obter informação, defende Sousa Pereira (Imagem: Pedro Soares)

“Ninguém consegue dizer quais serão as profissões que vão existir daqui a dez anos, e por isso temos de evoluir de um modelo que transmite conhecimentos para um modelo que transmite competências. E se as pessoas tiverem competências e capacidade de ir buscar informação, conseguem desempenhar qualquer profissão”.

Sousa Pereira não é um revolucionário, mas se fosse aboliria a matéria na sala de aula.

“Apelo ao autoestudo, cargas horárias muito reduzidas. Isto não é o ensino secundário”, esclarece o reitor, que defende o fim dos sumários das aulas, matéria definida ou programa. Será que um aluno de 18 anos tem maturidade para criar e manter o seu próprio plano de estudos? “Eu respondo-lhe com outra pergunta, será que os portugueses são lerdinhos? É evidente que se tivermos um sistema facilitista, de aulas com programinhos, eles [os alunos] adaptam-se a este sistema. Mas se os responsabilizamos e dissermos assim: você vai ter meia dúzia de aulas exemplificativas de como se aborda este assunto, tem aqui este trabalho para fazer e nós estamos aqui para o apoiar e discutir consigo. Isto vai funcionar”.

“Niels Bohr, prémio Nobel da Física, dizia que era importante as universidades terem bons laboratórios, mas mais importante do que isso era terem boas salas de convívio. Já tenho cabelo branco por isso posso dizer esta frase horrível: eu ainda sou do tempo em que havia faculdades cujo regulamento interno dizia «é proibido aos alunos dirigirem a palavra aos professores nos corredores». Mudámos para melhor. É fundamental haver discussão, massa crítica, mistura de pessoas com diferentes pontos de vista. Precisamos agora é de dinheiro”, e mais uma gargalhada.

E para esse dinheiro, será que não se pode angariar algum mecenas ou patrono junto dos antigos discípulos que fossem saíndo da universidade-gymnasium helénico de discussão livre?

Oh amigo, “nós somos um país de tradição católica, e não protestante. Os católicos dão esmolas, não partilham sucesso. Isso é uma tradição anglo-saxónica”, e uma última gargalhada.

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