Autónoma desde 1981, a Galiza persiste como exemplo de uma regionalização efetiva que faz de Espanha um dos países mais descentralizados do mundo. Além de língua própria, a região tem órgãos de governo eleitos e parlamento. Substitui também o Estado central na maioria das tarefas. Desde a segunda metade do século XX, a região cresceu e enriqueceu, tornando-se num polo industrial de referência na Europa e captando investimento de todo o mundo. Esta é a história dos últimos 40 anos da Galiza, um verdadeiro espelho da autonomia.
Passava pouco das 11h da manhã, hora espanhola, quando em frente ao edifício do Concelho de Tui já nos esperava Rafael Bargiela. Define-se como professor e historiador, mas é bem mais do que isso. É um filho da terra e um conhecedor inigualável da história da Galiza. Foi, por isso, o escolhido para iniciar connosco esta viagem pelo passado da região que se tornou autónoma há mais de 40 anos.
A conversa começa com a circunstância habitual de três pessoas que ainda não se conhecem bem. O primeiro tópico é a rapidez com que é possível chegar do Porto a Tui. As duas cidades estão separadas por um curto trajeto de apenas uma hora e 21 minutos de carro.
Rapidamente Rafael apressa-se a encontrar o local ideal para a entrevista. Propõe a Catedral de Tui, onde nas traseiras existe um pequeno miradouro com vista para o rio Minho. “Esta é a fronteira mais antiga da Europa. Desde o século XII, o rio mantém-se como separação natural entre os reinos, primeiro de Leão, depois de Castela e mais tarde de Espanha, em relação a Portugal”, explica o historiador, apontando para a cidade de Valença, que fica a poucos metros, na outra margem.
Sobre a autonomia na Galiza, a resposta está praticamente na ponta da língua. “O que foi realmente espetacular e uma das grandes conquistas, não só da Galiza, mas de todas as comunidades autónomas de Espanha, foi como se construiu uma nova estrutura política de organização do Estado que não tinha precedentes”, conta Rafael Bargiela.
A divisão de Espanha em comunidades autónomas chegou com a Constituição de 1978. Depois de 36 anos sob domínio da ditadura franquista, o país conseguiu finalmente iniciar a transição para uma democracia parlamentar e responder a um problema já antigo: a reivindicação das nacionalidades históricas.
“Essa reivindicação começou a ter uma certa capacidade com a organização do nacionalismo como um projeto político. Nos anos 30, o Partido Galeguista conseguiu trazer a influência do nacionalismo cultural e social e, consequentemente, a reclamação de uma autonomia”, explica o historiador.
Em 1936, os galegos são chamados pela primeira vez às urnas para se pronunciarem sobre a autonomia. A participação foi massiva para a época, com mais de 74% dos eleitores a exercerem o direito de voto. Os resultados não deixaram margem para dúvidas: 99,2% da população votou a favor da autonomia. Apesar disso, o estatuto não chegou a ser aprovado nas cortes espanholas, tendo sido adiado devido ao início da Guerra Civil.
A autonomia de facto só chegaria assim em 1981, altura em que foi aprovado o estatuto que ainda hoje está em vigor. O documento é a norma institucional básica da Galiza e define a divisão de poderes na região. A Junta da Galiza é responsável pelo poder executivo e administrativo, enquanto que o Parlamento exerce funções legislativas, ao mesmo tempo que controla a ação do governo e aprova os orçamentos da região.
A viagem continua, agora em direção a Norte. 113 Km separam a pequena cidade de Tui da grande capital política da Galiza. Santiago de Compostela, conhecida como lugar de culto e de peregrinação, alberga também a maioria das instituições políticas da região.
Imponente, o Parlamento da Galiza não passa despercebido. “É uma casa da democracia como qualquer outra”, começa por clarificar Pedro Puy Fraga, deputado do Partido Popular (PP). É o primeiro a receber-nos e, por isso, assume o papel de anfitrião.
Construída no início do século XX, o edifício da Assembleia da Galiza foi, antes de o ser, uma escola de veterinária e um quartel do exército. Como parlamento, funciona desde 1989, depois de ter sido comprado pela Junta da Galiza ao Ministério da Defesa espanhol por 550 milhões de pesetas.
A sua importância é inquestionável, dizem-nos todos com quem nos cruzamos nos corredores. “Uma autonomia sem uma assembleia legislativa própria não é em si um autogoverno. Acontece o mesmo nos Açores e na Madeira”, explica Miguel Santalices Vieira, presidente do Parlamento da Galiza, em entrevista ao Porto Canal.
“A autonomia é uma história de êxito. Termos um governo próprio e um estatuto permitiu-nos aceder a uma série de transferências do Estado e ajustar as decisões às nossas necessidades”, afirma o responsável máximo pela assembleia legislativa. Santalices Vieira destaca, por exemplo, a descentralização na saúde, uma área que está agora “muito mais próxima” dos cidadãos. “Antes da autonomia não dispúnhamos de recursos e éramos obrigados a transferir muitos dos doentes mais graves para Madrid ou Barcelona. Depois do estatuto passámos a ter unidades de cirurgia cardíaca, os hospitais desenvolveram-se e construíram-se centros de saúde em todos os concelhos”, recorda.
Além da saúde, da educação e da ação social, o Governo da Galiza tem competências em dezenas de outras áreas. De acordo com o estatuto de autonomia, a região é responsável pelas obras públicas, pelos transportes e até pela distribuição de energia elétrica. Estão ainda descentralizadas as decisões relativas às pescas, à agricultura e à indústria. Também o património, a cultura e a investigação estão sob a alçada da região, que conta com polícia própria e estações de rádio e televisão públicas.
Mas ainda há muito trabalho a fazer. Quem o diz é Luís Bará, deputado do Bloco Nacionalista Galego (BNG). “Toda a política económica, por exemplo, está muito centrada em Madrid”, afirma o parlamentar, que ocupa um dos 19 lugares do hemiciclo preenchidos pelo partido.
E nem a saúde escapa às críticas de uma oposição cada vez mais feroz. “Peça perdão senhor Rueda aos galegos e às galegas por colocar em risco a sua saúde com 13 anos de cortes e privatizações”, ouvimos no momento em que nos sentamos nas galerias do hemiciclo, para assistir à sessão plenária. A voz é a de Ana Pontón, porta-voz do Bloco Nacionalista Galego. A deputada de 45 anos tem, nos últimos tempos, quebrado estereótipos e aumentado o poder do partido. Nas últimas eleições, em que foi candidata à presidência da Junta da Galiza, conseguiu triplicar os resultados eleitorais do BNG.
A resposta veio logo a seguir. “Senhora Pontón, quando falou em pedir perdão, pensei que pela primeira vez ia fazer um exercício de humildade”, diz Alfonso Rueda, o líder do governo galego, que rapidamente muda de tema. “Estou seguro de que, se o resultado de ontem do Supremo Tribunal tivesse sido outro, vocês teriam começado por aí. Vocês e o Partido Socialista”, atira. Em causa está uma decisão judicial que deu autorização a uma empresa florestal para manter atividade em terrenos localizados junto à ria de Pontevedra.
É agora a vez do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). E Luís Álvarez Martínez, líder da bancada parlamentar do partido, não perde tempo. “É uma falta de respeito e de empatia trazer para aqui um tema destes. Mas tinha que ser o seu minuto de glória. Se quiser, recordo-lhe qual era a posição do anterior presidente da Junta da Galiza em 2015. É que todos temos histórias Sr. Rueda, você incluído”, exclama o deputado do PSOE que recebe um aplauso vindo dos outros 13 parlamentares que compõem o grupo do partido.
Os dados estavam lançados para um dia agitado na casa da democracia galega. Alfonso Rueda respondeu, como é habitual, às perguntas dos deputados durante as primeiras horas da sessão plenária, que segue depois, sem ele, para a aprovação de leis. Para quem assiste, e sobretudo para quem não costuma seguir a política regional, há algo que salta à vista. Uma das principais diferenças entre os três partidos representados no parlamento é a forma como olham para o nível de autonomia da região.
“O Partido Popular da Galiza nunca foi um partido autonomista, fingiu-se autonomista um pouco por necessidade”, afirma o deputado Luís Bará. “É uma sucursal do Partido Popular de Espanha e, por isso, as suas decisões estão sempre subordinadas às prioridades do partido a nível estatal, que é agora liderado por um ex-presidente da Junta”, explica.
Bará refere-se a Alberto Núñez Feijóo. Foi presidente da Junta da Galiza durante treze anos e é agora líder do Partido Popular, sendo apontado como favorito nas próximas eleições. Feijóo contrapõe, no entanto, o argumento do deputado do Bloco Nacionalista Galego. No primeiro discurso enquanto presidente do PP, a 6 de maio de 2022, fez questão de reivindicar a identidade territorial para fazer frente às mentalidades centralistas, garantindo que, na sua conceção, “as autonomias não estão no Estado, as autonomias são o Estado”.
Também Pedro Puy Fraga defende as vantagens do modelo autonómico e contraria as declarações do deputado do Bloco Nacionalista Galego. Para o porta-voz do Partido Popular no Parlamento da Galiza, o modelo atual “permite adaptar as necessidades dos cidadãos aos poderes públicos”, garantindo melhores resultados tanto a nível económico, como político e social.
Essa é aliás a visão da maioria dos especialistas. “Quando há competências e capacidade para tomar decisões, estas acabam por ser mais adequadas ao território e às suas características”, afirma Maria Bastida, professora de economia da Universidade de Santiago de Compostela.
Apesar das diferenças ideológicas entre os vários partidos, “todos estão a favor de um maior autogoverno”, explica Carlos Amado, coordenador de informação da TV Galiza, que também tem sede em Santiago. “É um processo que continuará ao longo do tempo”, acredita o jornalista do canal público galego.
Se há, na Galiza, quem esteja satisfeito com o modelo autonómico e com a forma como este evoluiu nos últimos 40 anos, também há quem acredite que a região deveria ser mais do que isso. Apesar de contidos, os movimentos independentistas galegos continuam a propor o reconhecimento da Galiza como estado soberano.
Nos últimos anos criaram-se dezenas de teorias sobre a independência da Galiza. Entre elas, a ideia de um conceito político com Portugal para criar o género de uma “Portugaliza” que, numa visão ainda mais radical, se poderia unir ao País Basco e à Catalunha numa espécie de confederação ibérica de estados. Ideias que à partida não passarão disso mesmo, até porque o BNG, única força política nacionalista com representação democrática, assume hoje uma posição mais moderada.
“Há uma pulsão nacionalista na região, mas socialmente não há um desejo de independência”, explica Carlos Amado, que não identifica o risco de a situação escalar como aconteceu na Catalunha. Aliás, a posição é também defendida pelo presidente do parlamento, que garante que a população “se sente tranquila com o governo atual e tem a noção de que vive numa região com um nível de autonomia muito elevado”.
Apesar disso, o Bloco Nacionalista Galego não tem dúvidas de que o mapa da Europa se vai alterar nos próximos anos. “Em Espanha há uma realidade plurinacional, há nacionalidades históricas que não têm um bom encaixe político no atual mapa das autonomias e, portanto, há um debate sobre esta questão”, afirma o deputado Luís Bará, que recorda que há situações semelhantes a acontecer noutros países, como o Reino Unido ou a Bélgica.
Visão contrária tem o Partido Popular, que coloca em si próprio o mérito de ter conseguido gerir “o amor que o povo galego tem pela sua terra, que não é incompatível com o amor por Espanha e com a integração na Europa”. Para Pedro Puy Fraga, são estes três ingredientes que caracterizam o sentimento identitário da população da Galiza, que é “muito aberto” e “totalmente compatível” com outros.
Ainda em Santiago de Compostela, partimos agora à descoberta do carácter identitário de que tanto se fala na Galiza. A verdade é que a cultura está por todo o lado, assim como o património e a tradição. No centro da cidade destaca-se a catedral que, todos anos, é local de visita obrigatório para milhares de peregrinos vindos de todos os cantos do mundo. Mas o que chama mais à atenção na região? O galego, a língua própria da Comunidade Autónoma.
E se antes o galego estava circunscrito aos cerca de 29 mil quilómetros quadrados do território da Galiza, agora dá-se a conhecer ao mundo através da internet e das redes sociais. No Tiktok e no Instagram o DígochoEu, uma rúbrica da TV Galiza dedicada à defesa da língua galega, conta com quase meio milhão de seguidores, muitos deles portugueses. Esther Estévez, a jovem apresentadora do programa, transformou-se numa autêntica estrela e já tem fãs um pouco por todo o mundo.
“Era um projeto muito pequenino e, apesar de ser agora algo que tem êxito, não esperávamos que tivesse esta dimensão”, conta Esther, que com apenas 25 anos é já uma das caras mais conhecidas da emissora pública galega.
O objetivo do DígochoEu é aprender galego e não deixar que a língua caia em desuso. O público são sobretudo as crianças e adolescentes que, diariamente, são inundados com conteúdo em castelhano.
“O mais bonito foi quando começámos a chegar às escolas, tanto de forma virtual com os vídeos que são usados pelos professores nas aulas, como com as nossas visitas presenciais, que começaram há cerca de um ano. É muito gratificante”, afirma Esther.
Os vídeos curtos focam-se essencialmente em determinadas palavras e expressões características da língua galega, realçando as diferenças e as semelhanças com o castelhano e com o português.
Segundo a Real Academia Galega, dos cerca de 2,7 milhões de habitantes da Galiza, mais de dois milhões falam galego. Apesar disso, o idioma continua a ser mais ouvido nas zonas rurais e está cada vez mais disperso nas grandes cidades.
Aliás, foi a ligação à língua portuguesa que levou o DígochoEu para fora de portas. “Estamos aqui ao lado, e é engraçado porque há muita coisa igual, mas também muita que é completamente diferente”, explica Esther.
Essa dicotomia levou a que dentro da rubrica nascesse um pequeno espaço chamado “Apontamento Lusófono”. A ideia partiu de Carlos Amado, diretor do programa que foi, no final dos anos 90, jornalista correspondente no Porto. O objetivo era chegar ao público português, sobretudo o que vive na região Norte, mas correu tão bem que o projeto atravessou um oceano e começou a ser visto no Brasil.
A maioria dos conteúdos do DígochoEu são gravados nas instalações da TV Galiza, em São Marcos, nos arredores de Santiago de Compostela. Nos corredores, nota-se a agitação normal de um canal que cresceu de forma explosiva nos últimos quase 40 anos e que se tornou referência no panorama audiovisual espanhol.
“O nascimento da rádio e da televisão da Galiza mudou tudo, porque os galegos não estavam habituados a ouvir a sua língua nos meios de comunicação”, explica Carlos Amado, que além de diretor do programa de Esther Estévez é um dos coordenadores de informação do canal. “Foi um agente normalizador da língua brutal”, remata.
A corporação de Rádio e Televisão da Galiza iniciou as suas emissões em julho de 1985, com a exibição de uma curta-metragem dobrada em galego. Depois de um período experimental em que transmitia 39 horas por semana, arrancou 24 horas por dia e nunca mais parou. 80% dos conteúdos emitidos são agora oriundos de produção independente.
Uma das suas principais missões é proteger a língua galega, que apesar de já não captar o interesse dos mais jovens como antigamente, não deverá ficar ameaçada. “Eu quero acreditar que o galego vai continuar a existir sempre”, afirma Esther. Para a apresentadora, “não vale a pena ser-se pessimista, porque afinal os projetos atrativos como o DígochoEu continuam a cativar os mais novos, que têm cada vez mais carinho pela língua.”
De Santiago de Compostela, partimos à descoberta da Corunha, zona portuária e um dos grandes pólos industriais da Galiza. O ritmo citadino do centro contrasta com a calma das praias de areia branca e fina. A cidade é uma das maravilhas da região autónoma, diz quem lá mora e quem por lá passa.
Além dos muitos encantos naturais, históricos e culturais, a Corunha é também conhecida pela indústria e pelas imponentes fábricas. Estão um pouco por todo o lado, mas sobretudo na pequena vila de Arteixo, a pouco mais de 13 km da cidade.
Passa pouco das oito da manhã quando chegámos. A vila ainda está a acordar, mas nos cafés já se sente o fervilhar de um novo dia de trabalho. A maioria dos habitantes trabalha nas indústrias, que a partir da segunda metade do século XX começaram a fixar-se na zona. Grande parte dedica-se ao têxtil, a joia da coroa do setor transformador da Galiza.
A Inditex, considerada uma das mais valiosas redes de fast-fashion do mundo, nasceu na Corunha e ali se mantém de forma orgulhosa.
Nasceu em 1985 pelas mãos de Amâncio Ortega e detém atualmente as marcas Zara, Zara Home, Pull&Bear, Massimo Dutti, Bershka, Stradivarius, Oysho e Tempe. O empresário é uma figura incontornável da história da Galiza, mas tentou sempre passar despercebido. As fotografias públicas contam-se pelos dedos das mãos e as entrevistas não existem. Os analistas acreditam que o segredo é precisamente um dos ingredientes para o sucesso da empresa que, em 2021, lucrou mais de três mil milhões de euros.
“O caso da Inditex é muito curioso para os investigadores, mas não há dúvidas que é um império que só foi crescendo com o passar do tempo”, afirma Maria Bastida, professora de economia da Universidade de Santiago de Compostela, que não tem dúvidas de que a empresa tem ajudado a elevar a região da Galiza.
A opinião é partilhada por Alberto Rocha, presidente da Confederação de Indústrias Têxteis da Galiza (Cointega). O empresário reforça, no entanto, que “para o grupo Inditex, o panorama político não foi relevante”, uma vez que Ortega “conseguiu tudo com os seus próprios meios”.
Apesar disso, Alberto Rocha garante que “para o resto do setor têxtil ter uma administração de tipo autonómico foi muito vantajoso”. Para o responsável da Cointega, antes de 1980 “era impensável que na Galiza se criassem empresas como as que se criaram, marcadas pela eficácia na logística, quando a região está num canto” da Europa.
O setor têxtil é um dos exemplos do desenvolvimento da Galiza no pós-autonomia. Mas olhemos os números. A região deixou de ser uma das mais pobres e tornou-se na terceira comunidade autónoma de Espanha em que o PIB per capita mais cresceu. De 1894€ em 1980, o indicador explodiu para 21.730€ em 2020, ultrapassando Portugal e aproximando-se da média espanhola.
Fica claro que a autonomia transformou a região e contribuiu para a alteração da sua estrutura produtiva, que passou a ter os serviços e sobretudo a indústria como alavanca para o desenvolvimento económico. As exportações de mercadorias, por exemplo, dispararam 15 anos depois da autonomia, em 1995, já representavam 15,57% do PIB. O valor foi crescendo ano após ano, e a partir do século XXI superou os valores médios registados em Espanha e em Portugal. Em 2020, mais de 35% do Produto Interno Bruto Galego vinha de exportações.
A viagem segue agora novamente para sul, em direção a Pontevedra. É lá que encontramos Carlos Lopéz, empresário têxtil que, em tempos, chegou a cruzar-se com Amâncio Ortega nas feiras de moda em França e Itália. É proprietário da Foque Kids&Clothes, uma pequena marca de vestuário para crianças, feita sobretudo à base de malhas e lãs. A sua empresa não conseguiu crescer como a de Ortega, mas é um exemplo vivo da forma como a resiliência dos empresários galegos contribuiu para o desenvolvimento da região.
“Para ser grande começa-se sendo pequeno, porque toda a indústria têxtil começa com uma costureira que devagarinho inicia a produção”, afirma Carlos, que destaca a ajuda dada pelo governo regional às empresas. “Ajudaram-nos muito, sobretudo com a promoção. Deram-nos a possibilidade de estarmos nas feiras internacionais e divulgar o nosso trabalho.”
Mas o desenvolvimento económico e empresarial da Galiza não se deveu apenas à gestão interna dos recursos. Rafael Bargiela, historiador, lembra que “a integração na União Europeia e os fundos estruturais marcaram um antes e um depois na região.”
Entre 1986 e 2020 chegaram à Galiza mais de 22 mil milhões de euros de fundos europeus. O impulso económico permitiu que, entre 2007 e 2009, a região integrasse a lista das mais desenvolvidas da Europa.
“A verdade é que são alavancas”, afirma também, sem hesitar, a economista Maria Bastida. Apesar disso, garante que “é preciso saber utilizar os fundos e colocá-los nos lugares certos para que frutifiquem”. Para a professora universitária, foi isso que conseguiu fazer a Galiza, que “teve capacidade para adaptar os fundos às características do território”.
Já de regresso a Portugal, parámos em Vigo. A cidade, que nos últimos natais se tem enchido de portugueses curiosos com as atrações festivas, é uma das mais importantes da Galiza e concentra grande parte da estrutura económica da região.
E se até aqui se ouviram apenas elogios à boa gestão da autonomia, a relação entre Vigo e o governo regional já teve melhores dias. O autarca da cidade é um opositor assumido da Junta da Galiza e das políticas do Partido Popular.
Abel Caballero é alcaide de Vigo desde 2007. Foi eleito pelo Partido Socialista da Galiza. Assume-se como defensor pleno da autonomia, mas não de quem a gere. “Vocês em Portugal têm um primeiro-ministro e a instituição é boa, há uns bons e outros maus e aqui acontece o mesmo, mas em geral a autonomia é um grande êxito”, afirma o autarca.
“A Galiza nasce sobre Santiago e a Corunha, mas na modernidade emerge Vigo”, lembra Abel Caballero, que lamenta a “falta de apoio institucional” por parte da Junta. “Não nos podemos esquecer que eles tentaram encerrar o nosso aeroporto”, remata.
A razão para a discórdia? Possivelmente as diferentes cores políticas que governam as duas instituições. Mas, para o alcaide de Vigo, o problema vai mais além. “Vigo é economia, é indústria, são as empresas. Temos uma força económica imparável e a Junta da Galiza não entende isso”, afirma.
Mas, as picardias de Caballero com outras figuras políticas não ficam apenas em território galego. Na cidade do Porto, o autarca é conhecido pela desavença com Rui Moreira, com quem se desentendeu há já alguns anos. Em causa está uma declaração do presidente da Câmara do Porto, em 2016, numa entrevista à revista Visão, que compara a cidade de Vigo à "salsicha fresca dentro de uma francesinha, com um aeroporto miserável”.
Na altura, o Alcaide de Vigo apressou-se a responder a Moreira, pedindo-lhe que retificasse as declarações e que pedisse perdão à cidade “por um insulto gravíssimo” como nunca tinha ouvido de nenhum responsável político. Agora, Abel Caballero volta a dizer que “foi uma opinião muito desafortunada” e que só irá “restabelecer relações com o próximo autarca” do Porto.
“Nós temos em Vigo um aeroporto que queremos para viajar dentro de Espanha e para alguns lugares da Europa, mas o aeroporto do Porto é uma oportunidade, porque se eu quiser ir a Nova York, a Buenos Aires ou ao Brasil, é lá que vou embarcar”, esclarece Caballero. Apesar disso, o presidente de Vigo garante que não vai “deixar que o aeroporto do Porto ocupe o lugar” da cidade galega.
No entanto, a relação entre Vigo e o Porto não se estabelece apenas nas questões aeroportuárias. Há outro meio de transporte que tem, nos últimos meses, sido protagonista na história entre as duas cidades. O projeto do comboio de alta velocidade, que irá ligar Lisboa ao Porto em apenas 1h15, prevê a ligação à cidade galega para integrar depois a rede europeia.
Neste processo, Abel Caballero volta a criticar a Junta da Galiza pela “falta de empenho e investimento” e garante que os esforços para que a ligação a Madrid aconteça estão a ser feitos pelo Concelho de Vigo.
De recordar que, no final de fevereiro, o jornal Faro de Vigo avançou, citando a Comissária Europeia dos Transporte, que a ligação ferroviária de alta velocidade entre o Porto e a Galiza não deverá seguir os planos apontados pelo governo português, que preveem a conclusão do projeto em 2030. Aldina-Loana Valean estima um atraso de 10 anos, empurrando a previsão para 2040. Entretanto, o executivo de António Costa já veio desmentir as declarações, com o secretário de Estado das Infraestruturas a garantir que o TGV “não irá sofrer atrasos”.
Prestes a terminar a viagem, e mesmo que, para já, sem comboio, há algo que fica evidente quando saímos da cidade de Vigo. Ao contrário do que diz o ditado, afinal de Espanha podem vir bons ventos e até bons casamentos. Isto porque, mesmo com pequenas contrariedades, as relações entre a Galiza e o Norte de Portugal estão agora melhores do que nunca. Afinal, segundo a história, as duas regiões podiam mesmo ter sido uma só.
Rafael Bargiela, que encontrámos no início desta viagem na pequena cidade transfronteiriça de Tui, recorda que “a Euroregião Galiza-Norte de Portugal foi a primeira da Europa e um elemento substancial para a receção de fundos” nos dois países.
Apesar disso, o historiador afirma que a relação poderia ser ainda melhor se as duas regiões tivessem o mesmo sistema político. “A questão é que foram os portugueses que votaram que não queriam a regionalização”, recorda, fazendo referência à auscultação da população feita em 1998. Nessa altura, mais de 60% dos eleitores votaram contra a divisão do Estado em regiões autónomas, depois de mais de um ano de uma campanha nacional pelo “Não” assente no medo e na contrainformação.
“Não há que ter medo que exista uma fratura ou divisão. A descentralização é algo muito positivo, basta-nos olhar para países como a Alemanha ou a Suíça que estão entre os Estados mais avançados do mundo e que têm competências em áreas que nem Espanha tem”, frisa também Luís Bará, deputado do Bloco Nacionalista Galego.
Por sua vez, o deputado Pedro Puy Fraga, do Partido Popular da Galiza, destaca que “Espanha é o país do mundo que mais rápido passou de ser um Estado muito centralizado para ser um dos mais descentralizados”, garantindo que qualquer país tem capacidade para mudar.
Já o presidente do Parlamento da Galiza Miguel Santalices Vieira prefere não deixar uma opinião vincada sobre uma possível regionalização em Portugal. Diz apenas que “esse é um debate que terá que ser feito inevitavelmente na Assembleia da República”, acrescentando que a única coisa que pode garantir é “o enorme êxito” que foi a implementação do regime autonómico na Galiza.
Entretanto, e já de regresso a Portugal, surgem novos dados no que à regionalização diz respeito. Depois de ter garantido que 2024 seria o ano certo para um novo referendo, o Governo português voltou a dar um passo atrás. No início de março, a ministra da Coesão Territorial garantia que a auscultação dos habitantes não fazia sentido, tendo em conta a posição atual de Luís Montenegro que, no seu primeiro discurso enquanto presidente do PSD, declarou abertamente ser contra o referendo.
Quanto à Galiza, os que defendem a regionalização em Portugal vêem-na como exemplo. Dizem que as águas cristalinas do Rio Minho deveriam funcionar mais como um espelho e menos como uma fronteira.