“Tenho 70 anos e cavo como gente grande”. Na horta comunitária de Campanhã cultiva-se saúde

Catarina Cunha
Encaixada nas traseiras da Escola Básica do Falcão há oito anos, a Horta da Oliveira, em Campanhã, reúne cultivadores de várias gerações que diariamente semeiam produtos biológicos, partilham as sacholas e adubam amizades. Aquele terreno acolhe 99 talhões e é o maior terreno público que integra o projeto ‘Horta à Porta’ da Câmara do Porto, em parceria com a Lipor.
“De momento há pouca coisa, só hortaliça. A partir do próximo mês é que se começa a plantar tudo. Hoje, plantei alface”. As palavras são de Gilberto, conhecido na horta por “Sr. Branco”. Tem 71 anos, o cabelo da cor do apelido e é natural de Chaves. Numa manhã de sol, encontrava-se a descalçar as suas botas de trabalho quando o interrompemos nos seus 25 metros quadrados de terra. É nesse pequeno terreno que há oito anos cultiva frutos e vegetais.
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O idoso não conta a história de como se instalou na primeira fila de talhões [parcela de terreno], mas fala do gosto pelo espaço onde religiosamente, sete dias por semana, colhe saúde. “Venho todos os dias, nem que seja só um bocado. Gosto disto. Fui criado no meio da terra. É um passatempo e faz muito bem à mente. Tenho 70 anos e cavo como gente grande, alguns com 50 já não se podem pôr de pé”, comenta, entre risos.
Para o reformado, o segredo para uma boa plantação passa por “cavar bem a terra, estrumá-la e arranjar boas plantas”. Além disso, “é preciso regar, sachar e tirar as ervinhas”. Neste processo, o tempo nem sempre é o melhor aliado. “Já semeei os pimentos a 3 de dezembro e ainda não nasceram. Não sei o que se passa, vamos ver”, afirma.
O hortelão partilha que a presença assídua na horta permitiu-lhe cultivar amizades com outros utilizadores. Um deles é Fernando Moreira, dono do talhão número dez. Por lá, há favas e ervilhas a crescer. Fomo-lo encontrar agachado, de luvas calçadas a arrancar ervas daninhas.
Encontramos Fernando a arrancar as ervas daninhas Foto: Pedro Benjamim | Porto Canal
No auge dos seus 67 anos, conta ter vindo parar à horta da oliveira, de forma casual, após a nora o ter inscrito. “Aqui não penso nos problemas, distraio-me” refere, acrescentando que não dá pela passagem do tempo. Certo é que, minutos antes, interrompeu a entrevista do seu amigo Gilberto para perguntar as horas.
O cultivador destaca que aprendeu tudo sobre agricultura com o seu pai durante a infância passada em Trás-os-Montes. “Tinha entre 8 a 9 anos. Vim para o Porto aos 14 anos”. Conhecimento que completou com a formação em produção agrícola no modo biológico e compostagem dada pela Lipor. “Aprendi outras novidades, como a utilização de vinagre ou líquido da loiça para matar a bicharada”, sublinha Fernando, que de volta em meia traz uma das suas netas para o ajudar na lavoura.
Iniciativa arrasta gerações
Nos primeiros talhões da horta da oliveira, encontramos um recém-agricultor. António Oliveira, de 58 anos, frequenta aquele espaço há pouco mais de um mês. Esteve um ano na lista de espera para conseguir semear as ervas aromáticas, os espinafres e a couve-flor e lombarda.
Apesar de ter sido empurrado pela esposa para a agricultura, (ausente do campo por questões de saúde) reconhece ser “gratificante” e “louvável” ter oportunidade de se conectar com a natureza e recordar as memórias de infância, num local que “além de ser lúdico é também de relaxamento”. Residente em Campanhã há 30 anos, o homem confessa que a Horta de Oliveira também lhe permite socializar e aprender a arte do cultivo com hortelões mais experientes.
António Oliveira chegou há pouco mais de um mês à horta da oliveira
Foto: Pedro Benjamim | Porto Canal
Da horta para o tacho
Após colhidos, os legumes e frutos seguem para a casa dos hortelões e respetivas famílias e amigos. “Onde é que vou comer isto tudo? Tenho que dar muita coisa”, responde Gilberto. O mesmo acontece com o seu amigo Fernando que adianta fazer grandes pitéu com os seus produtos. “Daqui a bocado, vou almoçar um rancho com as últimas couves que apanhei na horta”, divulga, constatando as diferenças do cultivo biológico e respetivas qualidades dos alimentos.
Seis hortas urbanas geridas pela Câmara
A Horta de Oliveira nasceu na freguesia de Campanhã em 2017. Atualmente, tem 99 talhões e é o maior terreno sob alçada municipal. Este é um dos seis espaços agrícolas que integram o projeto ‘Horta à Porta’ da Câmara do Porto, em parceria com a Lipor. O objetivo é incentivar a prática da agricultura biológica.
Após serem admitidos, os agricultores recebem um talhão, entre 25 a 30 metros quadrados, e uma formação em produção agrícola no modo biológico e compostagem. Aos utilizadores é-lhes também disponibilizada água, um compostor individual para guardarem os resíduos orgânicos (e com eles produzirem matéria para usar no cultivo), bem como uma casa abrigo para armazenar as ferramentas. Há ainda um WC portátil e bancos de pedra que possibilitam o descanso entre a lavoura. Todos os produtos plantados devem ser para consumo próprio.
No abrigo, os hortelões podem armazenar as ferramentas. As caixas identificam o número do talhão Foto: Pedro Benjamim | Porto Canal
A frequência na horta comunitária não tem custo associado, mas existem certas regras a cumprir. “As pessoas têm direitos, mas também têm deveres. Acima de tudo, têm que produzir em modo biológico, portanto não podem usar adubos químicos. Depois, não se deve fazer monoculturas, ou seja, cultivar apenas batatas. Têm que ter várias culturas, de preferências ervas aromáticas e flores para chamar os insetos para a polinização. Para além disso, também há regras de convivência porque as hortas além de local de cultivo são uma experiência social”, explica Pedro Medeiros, gestor das hortas urbanas da autarquia do Porto, acrescentando que cada talhão é monitorado mensalmente pela Lipor, de forma a conferir o cultivo biológico.
Cerca de 1.000 pessoas em lista de espera
A vontade de voltar à terra ou relacionar-se com a mesma justifica o sucesso do programa. Prova disso é a extensa lista de espera. “Sempre houve uma grande lista de espera. Aliás, não é só no município do Porto, mas sim em todos os que fazem parte deste projeto. No total são cerca de 3.000 pessoas, sendo que quase 1.000 só no Porto”, transmite o responsável, destacando que, ao contrário do expectável, há participantes de todas as idades. “Temos velhos e novos e famílias com crianças. Há de tudo, mas claro que os reformados têm mais tempo”, continua.
Episódios de vandalismo
O início da história da horta de oliveira também foi pautado por episódios de vandalismo. “Já aconteceu de alguns amigos do alheio virem cá ver se há ferro ou outras coisas apetecíveis. Agora, não acontece. As pessoas daqui também acabam por estar sempre de vigia”, esclarece Pedro Medeiros, informando que o local está sempre de portas abertas.
195 famílias nas seis hortas
O vice-presidente da Câmara do Porto, Filipe Araújo, demonstrou o interesse do município em alargar o programa. “Estaremos sempre ávidos em dotar a cidade de pontos que permitam desenvolver mais talhões e em que mais pessoas possam praticar a agricultura biológica”, vinca.
O número dois da autarquia portuense relembra que no Jardim Senhora do Porto existirá um espaço disponível para uma horta com capacidade para dez talhões. O vereador também recorda o reforço de uma das hortas urbanas municipais: “As seis hortas municipais viram, nas últimas semanas, acrescido mais 31 talhões na horta de Paranhos”. Filipe Araújo sublinha ainda que 195 famílias usufruem destes locais.
Os ponteiros do relógio aproximam-se das 12 horas. O almoço está à espreita, mas ainda há meia-dúzia de hortelões talhões correspondentes de rabo empinado a remexer na terra. António, acabado de chegar da rua, retira as folhas velhas da couve lombarda. Fernando termina de arrancar as ervas daninhas antes de ir saborear o rancho e Gilberto já está de saída: “Disse à minha mulher que ia ao banco levantar dinheiro e continuo aqui”, atira apressado.