'Curta' conta no Porto/Post/Doc passagem do CC Stop do consumismo à produção musical
Porto Canal / Agências
O documentário "Stop. Salas de ensaio para um materialismo histórico" ilustra a passagem do centro comercial portuense de um lugar de consumo a um de produção, com o auxílio de Walter Benjamin, disse à Lusa o realizador Jorge Quintela.
"Uma reflexão sobre este edifício é também uma reflexão sobre a cidade", disse à Lusa o autor, que usa fragmentos de “As Passagens de Paris”, projeto inacabado de Walter Benjamin, para abordar o Stop como "um lugar de consumo, um centro comercial que surge nos anos 80 e que de repente entra em falência e se transforma num espaço de produção artística, neste caso musical".
A curta-metragem documental tem antestreia marcada para quarta-feira, às 21:00, no Batalha Centro de Cinema, numa sessão especial do Porto/Post/Doc, festival que decorre até sábado.
Segundo Jorge Quintela, o filme tenta explorar a "temática da reflexão do Walter Benjamin sobre o que é a sociedade de consumo" com "o apogeu e o declínio deste espaço", centro comercial tornado centro cultural, através de uma "visão do materialismo histórico", com passagens do pensador alemão que falam do consumidor como "o último dinossauro da Europa", ávido da chamada "mercadoria".
Jorge Quintela observa que, da parte de alguma sociedade civil, "há uma tolerância em compreender, de alguma maneira, que é normal que um espaço de consumo entre em declínio", mas ao mesmo tempo "não compreende que um espaço de produção musical, de produção artística, consiga prevalecer num espaço" daqueles, ou mesmo "atribuir-lhe um valor que deveria ser atribuído".
"Para mim, era muito importante nessa reflexão conseguir ter o arquivo do que era o lugar, o terreno, antes de ser um centro comercial, que era uma garagem da Austin, uma garagem modernista dos anos 50", cujos proprietários "acabam por transformar num centro comercial, numa altura em que já tinha acontecido o Brasília, o Dallas, o Centro Comercial de Cedofeita e por aí fora", refere.
Em termos visuais, "o momento mais difícil foi encontrar imagens do período [comercial] áureo do Stop, que foi após a inauguração", mas depois de uma "pesquisa intensiva em tudo o que é hemerotecas", Jorge Quintela foi salvo pelas fotos do arquivo pessoal da atual empregada de limpeza do Stop, que até já tinha trabalhado na garagem da Austin.
"Isso para mim teve um peso muito grande", conta o realizador, falando nas "muitas camadas de leitura" que o achado de fotografias captadas por anónimos entre 1985 e 1986 representa, tendo sido "muito determinante" na forma como foi "criando a estrutura do filme".
A partir da década de 1990, os espaços "começaram a ser gradualmente ocupados como salas de ensaio", e para dar a entender a transformação, o realizador integra "imagens que dão referência a eventos como o Future Places, que aconteceu em 2008 e abre um bocadinho portas [do Stop] à população", bem como à orquestra StopEstra!, "em que havia de repente uma necessidade de tornar visível à cidade" a sua atividade, indo "tocar à Casa da Música ou aos Aliados".
"Acima de tudo, um dos impactos grandes, mais do que visual, é sonoro naquele espaço", com "a contaminação que existe sempre entre as várias salas", pelo que quis transmitir essa sensação "muito através do som, para de alguma maneira perceber os espaços de socialização, que era o caso do café, ou o tipo de ambiência sonora que se tinha ao longo dos corredores".
O dia da selagem das lojas e salas de ensaio, 18 de julho de 2023, "foi provavelmente o momento mais complicado" e até pela "ligação com o espaço" do autor, também músico utilizador do Stop, mesmo tentando o devido distanciamento para fazer o seu "filme-ensaio".
A selagem, crê, "fez parte de uma estratégia e política de desgaste, que ali se traduziu nesse disparate", ainda por cima "sem aviso".
"Até que ponto eu devia registar aquelas imagens? É um assunto muito sensível. É um momento forte, as pessoas estão fragilizadas. Ao mesmo tempo, eu senti a urgência e a necessidade de isso estar registado de maneira a que se perceba o quão violento foi e que não se pode voltar a repetir", vinca.
Apesar de acreditar que a "política de desgaste vai continuar a acontecer, de uma forma diferente", Jorge Quintela considera que no processo houve algumas pequenas vitórias para a comunidade do Stop, já que "foi a própria população da cidade que decidiu que tinha de intervir e que tinha de se manifestar contra aquela ação, aquela política".
"Isso fez com que se criasse, tenho a certeza, alguma pressão que obrigasse a Câmara a refletir sobre como iria proceder", e se "neste momento o Stop se encontra aberto, com uma nova administração que está a tentar regularizar", isso é sinal de que "aquilo tudo não foi em vão".
Porém, quanto ao futuro, considera que "se as coisas continuarem nesta política, a cidade vai ficar sem os seus habitantes, e portanto irá ser um parque de diversões".
"Não sei se nesse parque de diversões caberá um espaço como o Stop, que é um espaço de produção e não um espaço de consumo", resume.