“Berço” de Almeida Garrett no Porto. Das cinzas ao futuro que permanece incerto anos após incêndio
Fábio Lopes
Situado nas traseiras da muralha gótica que circundou a cidade do Porto, durante vários séculos, encontra-se o berço de Almeida Garrett, a casa onde o ilustre estadista, diplomata, orador e escritor nasceu em 1799 e viveu até 1804. Cinco anos após o incêndio que deixou o imóvel em ruína, em pleno coração do Centro Histórico, o esquecimento e abandono apoderaram-se do edifício, cujo futuro está envolto em pontos de interrogação e para o qual se desconhecem planos para a sua recuperação.
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É no número 37 da Rua Doutor Barbosa de Castro, a poucos metros da antiga Cadeia da Relação – hoje Centro Português de Fotografia – que está plantada há várias décadas a casa que viu nascer um dos maiores génios da literatura portuguesa.
Com quatro pisos, a casa, tomada pelos sinais do tempo, tem o piso térreo entaipado e as janelas permitem ver a estrutura interior que, a custo, sustém o edifício, expondo as cicatrizes do incêndio que consumiu o imóvel em abril de 2019. Desde então, pouco ou nada foi feito para dar nova vida a este importante património da Invicta e do país.
“Estamos aqui junto à antiga Muralha Fernandina, a muralha medieval que cercava a cidade, e é exatamente aqui que em 1799, nos inícios de fevereiro, nasce essa figura incontornável da cidade, do país. Um nome de referência absoluta, quando falamos das questões culturais, mas também políticas do nosso país do século XIX”, salienta, em entrevista ao Porto Canal o historiador Joel Cleto.
O edifício setecentista, que se destaca na silhueta portuense, é resultado da reforma urbanística levada a cabo na cidade pelos Almadas e ostenta na fachada um medalhão oval, em gesso, decorado com festões de folhas de louro, com uma inscrição em homenagem à memória do autor de “Frei Luís de Sousa” e “Viagens na Minha Terra”.
"Casa onde nasceu aos 4 de Fevereiro de 1799 João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett / Mandou gravar à memória do grande poeta a Câmara Municipal d’esta cidade em 1864", é possível ler-se.
“Almeida Garrett que nasce nesta rua, passa aqui os seus primeiros anos de idade, depois vai passar grande parte da infância em Gaia. Aliás, ele costumava dizer que: “eu nasci no Porto, mas criei-me em Gaia”, de onde depois irá para os Açores, na sequência da aproximação da cidade das tropas de Napoleão em 1809”, salienta Joel Cleto.
Ambição da autarquia ‘esbarrou’ no proprietário
A 26 de março de 2019, a Câmara do Porto aprovou por unanimidade uma recomendação da CDU para tentar adquirir a casa onde nasceu Almeida Garrett e ali instalar um polo do Museu do Liberalismo, a propósito dos 200 anos da Revolução que marcou, indelevelmente, a história da cidade e do País.
A proposta passava por adquirir o edifício e outros dois contíguos, contudo o negócio não foi avante, uma vez que o valor pedido pelo proprietário do centenário prédio (4 milhões de euros) foi bem superior à avaliação dos três imóveis (1,5 milhões).
Contactada pelo Porto Canal, a autarquia portuense refere apenas que nada mudou desde o tempo em que as negociações com o proprietário acabaram por não chegar a bom porto.
Sem negócio à vista, adensam-se as dúvidas em torno do futuro deste imóvel de interesse público, que está em “zona de protecção de património”, uma protecção base que garante a configuração do mesmo ao nível da sua arquitectura e estética. Contudo, a sua utilização fica nas mãos do proprietário.
Na ótica de Joel Cleto, o melhor destino para o edifício seria “um espaço que recordasse a figura de Almeida Garrett, mas também esse momento crucial da história do Porto e do país, que é o cerco do Porto”, dado que “curiosamente, nós não temos na cidade nenhum espaço museológico, onde, de um modo aprofundado, seja explicado o que foram esses 13 meses em que a cidade suporta um cerco terrível”, frisa o historiador.
Enquanto nenhuma solução é apresentada para o prédio, que tem também uma fachada virada para a rua das Virtudes, sobram agora as marcas do incêndio que o devastou em 2019 e que deixou dois bombeiros feridos, não afetando nenhum dos prédios vizinhos.
“Salvou-se a sua fachada, salvou-se essa memória e por isso acho que estamos sempre em tempo de reabilitar este imóvel como memória importante para a cidade”, remata Joel Cleto.
No início do século XIX, o Porto era um importante centro económico que sofreu com as consequências das invasões francesas e do Tratado de Comércio com a Inglaterra. Cresceu o descontentamento popular devido à crise económica e à perda de autonomia para o Brasil. Liberais portuenses fundaram o Sinédrio em 1817 para organizar a implantação do liberalismo em Portugal. Após revoltas em Espanha e Nápoles em 1820, estavam criadas as condições para a revolução liberal.
É no Porto que em 1820 nasce a revolta liberal, e mesmo durante guerra civil, entre liberais e absolutistas, que varre o país nas décadas seguintes, a cidade mantém acesa a chama do liberalismo.