José Afonso: O esquerdista apupado em Grândola que ia à Festa do Avante!
Porto Canal com Lusa
Lisboa, 21 fev (Lusa) -- José Afonso, autor de "Grândola, Vila Morena", senha do 25 de Abril, nunca leu Marx, foi apelidado de esquerdista, recusou-se a entrar no PCP, e até ouviu apupos num concerto em Grândola, nos anos quentes após a revolução.
Na terra que o inspirou nos versos "Em cada esquina um amigo/ Em cada rosto igualdade", ouviram-se, em 1977, apupos, gritos de "esquerdista" e o concerto terminou mais cedo, deixando o cantor triste, lembra o jornalista Vitor Matos, numa crónica publicada na Sábado 'on-line', em 2013, a propósito das 'grandoladas' de protesto, em tempos de 'troika', ao então ministro Miguel Relvas.
Esta "grandolada ao contrário" tem, segundo Vítor Matos, uma explicação possível: "Eram militantes do PCP, organizados ou voluntariosos. Quem fala disso não o sabe dizer, não perdoavam a José Afonso o apoio a Otelo Saraiva de Carvalho nas presidenciais de 1976 contra o camarada Octávio Pato, nem a sua aproximação à LUAR, organização de extrema-esquerda."
Otelo Saraiva de Carvalho, amigo de José Afonso, estratego do 25 de Abril e candidato presidencial em 1976 com o 'slogan' "O 25 de Abril para a Presidência", falou, em entrevista à Lusa, das relações difíceis com PCP.
"O PCP dava-lhe em cima, embora com cautela, porque reconhecia que mesmo a militância de base tinha uma admiração grande pelo Zeca", disse, lembrando que o compositor foi, em 1980, convidado a cantar na festa dos comunistas portugueses, a Festa do "Avante!.
O episódio de Grândola pode ter sido uma exceção. E hoje? José Afonso pertenceria a algum partido? Não, diz Otelo.
"Pergunta se estaria no Bloco de Esquerda? Poderia eventualmente, se fosse votar - que o Zeca também não era muito de votar - poderia votar no BE, mas não estaria incluído em nenhum grupo político. Exatamente pelo distanciamento que foi tendo em relação aos partidos", disse.
Até porque, segundo o militar de Abril, os partidos que "estão muito à esquerda colaboram com o regime, a democracia representativa".
Ele, como Zeca, queria "uma democracia direta, a partir da base, eleitas pela comunidade, culminando numa assembleia popular nacional".
Voltando aos anos de 1970, José Afonso não escondeu a sua simpatia e distribuiu manuais de guerrilha urbana, teve ligações à LUAR - Liga de Unidade e Acção Revolucionária, de Palma Inácio, que combateu a ditadura derrubada pelos capitães do Movimento das Forças Armadas, a 25 de abril de 1974.
Quando era chamado de "Amália do PC", atuava em espetáculos sem olhar quem organizava, fosse o PCP ou não, e até cantou no "altar da Capela do Rato", onde se juntaram, nos últimos dias de 1972, católicos progressistas contra Marcello Caetano e contra a guerra colonial, como o músico lembrou numa entrevista a José António Salvador, no livro "O Rosto da Utopia" (Edições Afrontamento).
Depois de 1974, a revolução levou-o para as ruas cantar, mas também fazer política.
Nunca pertenceu a um partido, recusou-se a entrar no PCP, nos anos de 1960 e entusiasmou-se com a candidatura de Otelo às presidenciais de 1976, que obteve 16,45% dos votos, mais do que o candidato Octávio Pato, apoiado pelos comunistas, que se ficou na casa do sete por cento.
Com o 25 de novembro de 1975, a revolução abrandou o passo, mas José Afonso continuou a defender as ideias de democracia direta, de poder popular.
"Podia ter sido um caminho", afirmou, se as formações que apoiaram Otelo [UDP, MES, FSP e PRP] "não tivessem tantos vícios".
NS // MAG
Lusa/fim