Márcia e a Perturbação Obsessiva-Compulsiva: “Deixei de ler e escrever para evitar os rituais”

Márcia e a Perturbação Obsessiva-Compulsiva: “Deixei de ler e escrever para evitar os rituais”
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Catarina Cunha

Márcia Gonçalves tinha 14 anos quando foi diagnosticada com Perturbação Obsessiva-Compulsiva (POC). A doença apoderou-se de tal forma da sua mente que deixou de escrever e ler. No Dia Internacional da Saúde Mental conheça um dos rostos de uma patologia silenciosa que afeta quatro em cada 100 portugueses.

 
 
 
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“Sinto muito orgulho em dizer que faço psicoterapia há 15 anos”. A frase ‘sem espinhas’ é de alguém que trata por ‘tu’ uma doença mental. Márcia Gonçalves foi diagnosticada com POC aos 14 anos, mas foi aos dez que começou “a ter alguns rituais”. O gatilho deu-se após o falecimento da sua bisavó que morreu de velhice durante o sono.

“Nessa altura, ouvi a minha irmã a dizer que tinha medo que lhe acontecesse o mesmo. Aquela frase, ficou-me na cabeça e preocupou-me”, desabafou em entrevista ao Porto Canal, enquanto via passar meia dúzia de pavões no Parque da Lavandeira, em Vila Nova de Gaia. Todas as noites, antes de adormecer, aquela pré-adolescente batia num objeto de madeira para que aquele pensamento nunca se concretizasse. Dia após dia, fazia-o com mais frequência.

Encontrava-se a finalizar o ensino básico quando os rituais começaram a aumentar exponencialmente, a par da ansiedade extrema, da sensação de vómito e das dores de barriga. “Já tinha rituais de manhã, à tarde e à noite. Repetia os movimentos, gestos ou palavras vezes sem fim até que o pensamento fosse eliminado, tudo em sequências numéricas de quatro”, contou a aveirense de 30 anos.

Nos primeiros quatro anos, preferiu sofrer em silêncio com uma patologia que até então lhe era desconhecida. No seio familiar, as repetições aconteciam em maioria pela calada da noite. “Lembro-me de serem três da manhã e estar a fazer rituais no quarto e tinha escola no dia seguinte”, confessa. Já na escola, optava por fazer os movimentos repetitivos mentalmente, uma forma que descobriu para evitar “dar muito nas vistas”. Apesar de ser ‘estranha’ aos olhos de alguns colegas, em momento algum diz ter sido “gozada, ou posta de parte”.

“Os meus pais achavam que eram tiques” e por vezes “chamavam-me a atenção como se tratasse de uma coisa de adolescente, algo que me deixava muito angustiada”, relatou, explicando que este segredo manteve-se ‘guardado a sete chaves’ até por fim ficar extremamente limitada na sua rotina diária.

“Foi um alívio contar a alguém o meu diagnóstico”

Márcia fez o seu próprio diagnóstico através de uma pesquisa para um trabalho escolar cujo tema era “o que queres ser quando fores grande”. Tinha 14 anos. Desde tenra idade era fascinada por psicologia, portanto sabia de antemão o rumo a dar ao projeto solicitado pela sua professora. Na internet encontrou “a doença que retratava tudo o que sentia”. Foi uma panóplia de emoções. Desde a incerteza à tranquilidade. Dali partiu para a ajuda de um profissional, opção que recomenda vivamente.

Diz ter sido “um alívio contar a alguém” a sua patologia, uma vez que deixou de se sentir sozinha e sem defesas. No início do tratamento psicológico mudou-se sozinha de Aveiro para Vila Nova de Gaia para frequentar o 10º ano de escolaridade num colégio com um plano de estudos especializado para as áreas de saúde. Mas, a razão era outra...

“Achava que se vivesse numa casa diferente, com pessoas e amigos diferentes eu ia ter que inventar rituais novos e ia conseguir não inventá-los (...) consegui convencer os meus pais que a mudança era o melhor para mim”, relatou. Foi preciso pouco tempo para que esta ‘crença’ saísse furada.

Embora estivesse acompanhada, Márcia sentia-se cada vez pior. A responsabilidade perante os familiares e a vontade de cumprir com os seus objetivos profissionais obrigavam-na a continuar a ceder, em constante esforço, e a agravar as suas condições físicas e psíquicas.

Por consequência, “deixei de ler e escrever” e “passava horas sentada no mesmo sítio”. “Acreditava que não me vestindo, não tomando banho, não lavando os dentes e não comendo não tinha momentos e oportunidades para fazer os rituais, por isso limitava-me a fazer o mínimo possível para sobreviver”, recordou.

Após esse período conturbado, Márcia deixou a Invicta e regressou de malas e bagagens para a cidade que a viu nascer, Aveiro. Com uma nova psicóloga, a luz ao fundo do túnel começou a aparecer, lentamente.

O novo tratamento envolvia um trabalho coletivo. “A minha mãe deixou de ter hobbies para estar comigo. Enquanto estava a estudar, a tomar banho ou a vestir-me tinha que estar comigo para controlar o tempo. Já na escola, também tinha amigos com autorização para me chamarem a atenção se fizesse algum ritual, claro que isso me dava vergonha”, esclareceu.

“Estou bem há cerca de quatro anos”

Volvidos anos de psicoterapia e medicação, Márcia Gonçalves - hoje psicóloga de profissão - considera estar bem de saúde há quatro anos. Apesar disso, não deixou de ter ansiedade e pensamentos repetitivos, apenas deixou de sentir necessidade de fazer os rituais.

A paciente expôs também que nos dias de hoje já tem ferramentas que a ajudam a lidar com a ansiedade e a acalmar-se nos momentos de maior tensão. Contudo, revela que não deixará de se assumir como uma doente com POC.

“Não gosto de assumir que não tenho POC, porque isso é um risco de ficar mais desatenta e numa fase em que estou mais frágil desvalorizar a doença voltar a cair nos rituais, mais facilmente”, salientou.

Para a profissional de saúde, esta doença mental tem que ser vista com naturalidade, como se tratasse de outra doença.

É importante falarmos cada vez mais dela, de uma forma aberta, e ter cuidado para não a desvalorizar, porque, de facto, todas as pessoas têm comportamentos ou hábitos ritualizados. Hoje, conheço-me e lido com as minhas fragilidades de uma forma incrível (...) sinto mesmo muito orgulho do percurso que faço na terapia e acho que toda a gente com ou sem POC deveria de fazer”, rematou.

Os pavões continuam a percorrer o Parque da Lavandeira, fazendo as delícias de quem por lá passeia. Márcia despede-se com a certeza de que a terapia foi a sua aliada para sair da sombra da sua doença mental.

A perturbação obsessivo-compulsiva é uma doença psiquiátrica caracterizada por pensamentos incontroláveis e comportamentos repetitivos. Atinge 2 a 3% da população a nível mundial e afeta quatro em cada 100 portugueses. Apesar disso, a maior parte dos doentes demora entre cinco a dez anos para pedir ajuda psicológica.

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