“Querem que eu vá para a rua”. Idosa em risco de ser despejada por instituição social no Porto
Catarina Cunha
Alice Correia está em risco de ficar sem teto, depois de ter sido alvo de uma ordem de despejo desencadeada pela AMI - Assistência Médica Internacional, atual arrendatária do apartamento onde vive há cinco anos. A idosa já fez quatro pedidos de habitação à Domus Social, mas não obteve pontuação suficiente. Sem retaguarda familiar, esgotam-se as alternativas de locais onde possa viver.
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No corredor daquele apartamento de tipologia T1 na freguesia de Campanhã, no Porto, amontoam-se os sacos repletos de roupa e outros pertences pessoais que escrevem o passado de Alice Correia.
A reformada de 66 anos procura ocupar a sua mente com o tratar das plantas que ocupam, de forma organizada, o parapeito da janela da sala, que tem como pano de fundo a rua da Lomba.
Depois da morte do seu “pilar”, o marido, a portuense vive com a sua cadela “Nina” de nove anos, que trata “como se fosse uma filha”, num imóvel arrendado à AMI, uma instituição que existe há 40 anos e presta acompanhamento social a cidadãos de todo o país.
De 2017 a 2019, a inquilina vivia no rés-do-chão de um prédio contíguo ao Centro Porta-Amiga da AMI, situado na rua da Lomba, e pagava 180 euros de renda. O contrato de arrendamento daquela casa foi celebrado pelo prazo de cinco anos, sendo renovável pelo período de um ano.
No final de 2019, o teto na zona da cozinha aluiu, devido “ao estado em que vivia o inquilino do primeiro andar” e deixou de ter condições básicas de habitabilidade, sobretudo de segurança e higiene.
Desta forma, para as obras de reabilitação serem levadas a cabo, algo que até ao momento ainda não aconteceu, a moradora teve que desocupar a habitação e ser realojada. Foi aí que se mudou de malas e bagagens para o TI localizado no Centro Porta-Amiga, uma viagem curta já que esse apartamento é vizinho do seu antigo ‘lar’.
Relativamente aos atrasos da empreitada, a organização sem fins lucrativos justifica-se, em resposta ao Porto Canal, com a subida do preço dos materiais de construção e com “o crescente aumento do número de pessoas em situação de vulnerabilidade económica”, cenário que a obrigou a canalizar os recursos financeiros para a ajuda humanitária.
Inquilina viveu meses sem luz e água
Após a entrada na sua nova casa, Alice Correia viu ser-lhe negado o pagamento das rendas, circunstância que se mantém até aos dias de hoje. “Não querem o meu dinheiro, querem pôr-me na rua”, declara resignada.
Sabendo das fragilidades económicas da residente, a AMI opôs-se à renovação automática do contrato de arrendamento em junho de 2020 e em julho de 2023. No final de janeiro de 2024, o contrato de arrendamento acabou por cessar, definitivamente.
Após dois meses, deu entrada uma ação de despejo no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, ainda em curso, aguardando-se o agendamento da audiência de julgamento. Ao Porto Canal, a AMI assegurou que “sempre procurou resolver toda esta situação da melhor forma possível e sem recorrer à via judicial”. Em todo o processo, Alice Correia tem sido ajudada pelo movimento Habitação Hoje.
Revoltada com a situação em que vive, a idosa vai preenchendo a pequena mesa redonda da sala de jantar com uma pasta onde estão dezenas de documentos que comprovam a sua luta por uma casa: cartas relativas à ação de despejo; correspondência associada ao processo em tribunal; e a documentação relacionada com os quatro pedidos de habitação social na Domus Social (empresa municipal de habitação). “Isto, tem sido uma guerra”, exclama, enquanto guarda as provas que ‘pintam’ a sua história.
A meia dúzia de baldes de água que ocupam o chão da sua sala de jantar denunciam a realidade vivida pela munícipe até à semana passada. A moradora viu ser-lhe cortado o fornecimento de luz e o abastecimento da água, durante cerca de meio ano, um ato que limitou a sua rotina diária, nomeadamente a higiene pessoal, e condicionou a recuperação da cirurgia ao joelho direito.
“Sofri muito ao carregar os baldes de água, até emagreci”, desabafa a reformada, contando que “tomava banho na casa de amigas ou ia à Associação de Moradores da Lomba”.
As refeições diárias têm de ser feitas num restaurante ao pé do apartamento, uma vez que a cozinha do mesmo não possui condições mínimas para confeccionar seja que alimento for. “É uma miséria. Não tenho exaustor e chove lá dentro, por isso os eletrodomésticos não podem estar ligados”, lamenta.
A AMI contrapõe a elevada degradação do espaço, argumentando que o mesmo à data do realojamento estava em “melhor estado de conservação” que a anterior habitação de Alice Correia. “O novo imóvel tinha sido recentemente alvo de obras e tinha-se adquirido de mobília completamente nova”, lê-se na nota enviada ao Porto Canal.
Quatro pedidos de habitação à Domus Social
Auferindo 600 euros de reforma, o futuro da idosa continua incerto e sem meios económicos para pagar as rendas atualmente exigidas num mercado de arrendamento volátil e impiedoso.
Face à sua situação, a portuense formalizou quatro candidaturas (em 2021, 2022 e duas em 2024) a uma habitação social em regime de arrendamento apoiado, “que não obtiveram a pontuação mínima exigida para a admissão”, confirmou o Porto Canal junto da Câmara do Porto.
Sem retaguarda familiar, uma vez que os seus dois filhos não têm condições habitacionais para alojar a mãe, esgotam-se as soluções da munícipe por um teto para viver. “Já não tenho cabeça para tanta coisa. Aqui, estou sempre com medo que me coloquem daqui para fora”, diz, angustiada. De tudo o que tem enfrentado nos últimos meses, Alice Correia continua a ter energia e esperança para o que aí vem. “Só quero o meu sossego”, remata com um longo suspiro.