Há quatro anos que comerciantes e fregueses aguardam pela reabertura do Mercado do Bolhão. Renovado, o edifício aguarda pela azáfama de um mercado que vive de gente. A cor original do edifício, os azulejos, a ardósia do revestimento trazem de volta o passado. A partir do dia 15 de setembro será para sempre.
Ermelinda da Silva Lopes irrompe pelo mercado carregada de recordações. As fotografias a preto e branco vão no bolso. De passo apressado, entra pela porta majestosa da Rua Formosa. “Já tinha saudades. Isto antigamente era muito diferente, no tempo da minha avó. Aquelas pontes não existiam, vieram muito depois”, conta. O atropelo de memórias é constante. A cada história, uma saudade. “Antigamente era tudo aos encontrões. Da porta de cima à porta de baixo, era “com licença, com licença, com licença”. O povo atropelava-se. O mercado estava cheio de fregueses e de vendedores. Posso dizer, sem exagero, que só de peixeiras éramos mais de 30”, recorda.
Dona Ermelinda cresceu no Bolhão. Percorreu os corredores na barriga da mãe e, quando nasceu, há 66 anos, lá ficou. Aprendeu tudo com a avó. “A minha avó era a ‘Palmira Alta’, foi ela que me criou, depois da morte da minha mãe. Ela não precisava de me dizer nada, eu via como se fazia e assim aprendi”, recorda com nostalgia.
Depois de uma vida a pregar no antigo mercado, Ermelinda Lopes transitou para o mercado temporário. “Estou mortinha por voltar. Não estou descontente com o temporário, foi bom nos dois primeiros anos, mas depois da covid a coisa começou a descambar. Felizmente, já temos o nosso mercado. Vai começar a funcionar se Deus quiser”, diz.
Ermelinda é uma das 51 comerciantes históricas que vai regressar ao Mercado no dia 15 de setembro. Pelo meio, três anos e quatro meses de empreitada que transformaram o Bolhão naquilo que é hoje. “Nem tudo agrada ao povo, mas é o que podemos ter e ainda bem que assim foi, se não íamos todas para a rua. Se fosse no tempo do Rui Rio, íamos todas para a rua”, afirma.
O projeto que acabou por ganhar forma e que deu origem ao renovado Mercado do Bolhão é o resultado da aprendizagem, a partir de outros projetos passados. Quem o admite é o próprio Nuno Valentim, arquiteto escolhido para a reabilitação: “Nestes últimos 30 anos, existiram quatro projetos, quatro visões, quatro modelos de mercado prontos a serem construídos. Nós tivemos o privilégio de vir no fim e de aprender com os projetos que antecederam. Todos eles.”
O processo de restauro e reabilitação do Mercado é longo. Sofre vários avanços e recuos desde 1984, altura em que a autarquia identifica a necessidade de uma intervenção. São mais de 30 anos de impasse quanto ao destino a dar ao edifício. “O primeiro projeto de reabilitação de que me lembro é o dos anos 90 do século XX, numa altura em que a cidade começa a falar do Património da Humanidade”, recorda Nuno Grande. O professor e arquiteto, que acompanhou os últimos anos de reflexão e de várias soluções alternativas, começa por relembrar um dos principais projetos de reabilitação para o edifício: “O projeto do arquiteto Joaquim Massena foi muito centrado no objeto patrimonial que é este mercado, com o paradigma do estacionamento para visitantes, ou seja, a ideia de que era preciso trazer o carro para vir às compras.” O que estava previsto era que as obras avançassem de 1996 a 1998, mas o projeto do arquiteto Joaquim Massena nunca chegou a sair do papel.
Anos mais tarde, em 2008, surge um novo concurso público. A Assembleia Municipal do Porto aprova o projeto da holandesa ‘TramCrone’ e instala-se a polémica na cidade. A empresa anuncia a demolição de todo o interior do Mercado como uma “inevitabilidade para rentabilizar o investimento” e para a possibilidade de construção de habitações de luxo e de um centro comercial. Apenas cerca de 3% da área total ficaria destinada ao mercado de frescos.
“O executivo de Rui Rio tinha uma visão mais liberal da rentabilização do património. Em cima da mesa estava um projeto do mercado em que se fazia uma reestruturação total do interior. A cidade ficou bastante assustada e reagiu”, explica Nuno Grande.
A cidade mobiliza-se contra o projeto. Entre manifestações e protestos de comerciantes, são muitos os debates públicos sobre a solução para o Mercado do Bolhão. A própria comunidade académica reage e organiza um seminário, promovido pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. O momento de discussão reúne várias figuras importantes da cidade e conta com a presença de Rui Moreira, na altura presidente da Associação Comercial do Porto e Manuel Correia Fernandes, que viria a ser o vereador do urbanismo do primeiro executivo do atual presidente da Câmara.
O Mercado do Bolhão fechou portas em maio de 2018. Foi nessa data que arrancaram as obras de restauro de reabilitação do edifício. “A empreitada iniciou-se quando finalmente houve a decisão por parte do município do Porto em fazer a reabilitação. Claramente que se optou pela continuidade de um mercado de frescos, pela continuidade de um espaço municipal”, explica Cátia Meirinhos, vice-presidente da empresa municipal GO Porto.
O respeito pela pré-existência passou a ser a grande prioridade. Foi com base nessa premissa que a Câmara do Porto entrega a empreitada ao arquitecto Nuno Valentim que começa a desenhar a obra com base em três grandes princípios. A preservação do edifício, a reabertura do mercado à cidade e o respeito pela dimensão humana e funcional. “Quisemos devolver a identidade de alguma forma perdida ou afetada ao edifício por força de muitos anos de pragmatismo, resolução de problemas, de falta de acompanhamento e 30 anos de espera de uma intervenção”, explica. A ideia foi devolver a identidade arquitetónica ao edifício. Ao trabalho de arquitetura juntou-se a criação da identidade gráfica que acompanha a ideia de continuidade. Eduardo Aires, designer responsável pela criação da marca ‘Bolhão’, defende que “este é um projeto sobretudo para servir as pessoas do Porto, que os estrangeiros têm também a felicidade de vir a usufruir. Recuperamos a memória do edifício. Fizemos o levantamento e valorizamos aquilo que sempre esteve presente neste edifício.”
As obras de reabilitação do Mercado do Bolhão terminaram a 12 de abril de 2022. A empreitada, que foi adjudicada por pouco mais de 22,3 milhões de euros, acabou por custar ao município mais 15%, ou seja, 26 milhões de euros. A empreitada teve financiamento do programa comunitário de apoio ‘Norte 2020’ no valor de 14,9 milhões de euros.
Nem só de mercado de frescos se faz o Mercado do Bolhão. Com a reabilitação do espaço, nascem 10 espaços de restauração e um local para eventos temporários. O piso superior do edifício, antes ocupado por comerciantes, passa a ser destinado a eventos como demonstrações ou exibições temporárias. Quanto às acessibilidades, o mercado passa a ter ligação direta ao metro do Porto e uma nova ligação pedonal da Rua Alexandre Braga à Rua Sá da Bandeira. Para comerciantes, a obra inclui uma cave logística que irá facilitar o transporte de mercadorias ao interior do Bolhão. “Um dos elementos chave deste projeto foi o túnel de logística. Com apenas uma boca de entrada a partir de um outro edifício conseguiu-se fazer uma entrada para cargas e descargas no mercado, evitando mexer no espaço público”, explica o arquiteto Nuno Grande.
Com a reabertura do Mercado do Bolhão há quem pense em recomeço, em “começar do zero”. André Fernandes é amolador no Bolhão desde sempre. Herdou o negócio do avô, que afiava facas e arranjava guarda-chuvas à porta do Bolhão. “Tinha clientes que vinham de vários pontos do país, de Braga, de Coimbra, que traziam ferramentas de várias pessoas para eu tratar delas”, conta. Com o encerramento do Bolhão, passou a fazer negócios no mercado temporário. Nas dificuldades de adaptação ao novo espaço, surge uma nova oportunidade de negócio. “Para além disso, de ser amolador, consegui a oportunidade de ter a venda de cutelaria no meu negócio com a ajuda da minha esposa”, explica.
A força do passado trouxe a vontade de um recomeço. André e Susana estão de regresso ao Bolhão, desta vez com um espaço no mercado de frescos. A marca está criada e a banca está montada. Que comece a azáfama no Mercado do Bolhão.