Encenador Nuno Carinhas faz estreia nacional de "Viagem de Inverno" de Jelinek em Almada

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Porto Canal com Lusa

Lisboa, 23 jan 2020 (Lusa) - "Viagem de Inverno", um texto da Nobel da Literatura Elfriede Jelinek, é a peça que a Companhia de Teatro de Almada (CTA) estreia na sexta-feira, e que também marca o primeiro encontro desta estrutura com Nuno Carinhas, enquanto encenador.

A sala experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, é o palco onde será representada a peça da autora austríaca, Prémio Nobel da Literatura em 2004, que toma por referência o ciclo de canções de Franz Schubert e dos poemas de Wilhelm Müller, que lhe estão na base, e dos quais emerge o texto, desdobra-se o pensamento da escritora, a ação da obra.

A montagem da peça representa uma tripla estreia para o encenador, já que é a primeira vez que dirige um texto de Jelinek, que trabalha com as três atrizes em cena -- Ana Cris, Flávia Gusmão e Teresa Gafeira -- e também com a companhia sediada no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, onde o encenador já apresentara outras peças, mas com diferentes estruturas artísticas.

A encenação de "Viagem de Inverno" surgiu de um desafio lançado por Teresa Gafeira -- que regressa à interpretação quatro anos depois do último trabalho -- a Nuno Carinhas, disse o encenador em entrevista à agência Lusa, no final de um ensaio da obra.

"Queria ficar, mas uma pessoa não pode repetir-se, como a história ou o tempo, ambos nunca se repetem, é admirável (...)" assim começa a "Viagem", protagonizada por três atrizes premiadas e agora dirigidas pelo encenador, cenógrafo e figurinista que, entre 2009 e 2018, assumiu a direção artística do Teatro Nacional S. João, no Porto.

Um texto que "tanto pode ser para três atrizes, como para 30", já que não há indicações nenhumas da parte da autora quanto ao número de intérpretes, disse Nuno Carinhas à Lusa, antes o desdobrar de vozes que constitui a essência da obra.

Construída em oito momentos e interpretada por três atrizes, "por ser um número conveniente" e lhe ter parecido "suficiente", como referiu, "Viagem de Inverno" é, nas palavras do encenador, "uma voz desdobrada", já que "não há propriamente personagens", mas "a vontade de partilhar os textos que se vão desenvolvendo".

Na obra em que não existe "padronização de personagens, de didascálias, ou de espaço cénico", que permitam antecipar "uma estratégia de construção", a encenação foi feita "sem preconceitos, em conjunto com as atrizes", disse à Lusa.

"Temos de ir construindo à medida que vamos desbastando o texto e que vamos arranjando sentidos para ele. Sentidos do discurso, sobretudo. Está tudo baseado no discurso. Tudo baseado nas palavras", frisou Nuno Carinhas.

Num texto em que as vinte e quatro canções do ciclo "Viagem de Inverno", de Wilhelm Müller e Franz Schubert, são som de memória, "reminiscência a soar numa noite fria e selvagem de Inverno", como escreve a CTA numa introdução à peça, o trabalho de Nuno Carinhas teve como "primeira prioridade aquilo que se diz" no texto.

"Com as suas rimas, com as suas repetições, com as ligações, às vezes por assuntos, outras vezes por sonoridades", sublinhou, o que a encenação da obra de Jelinek exige, é que se vá "atrás da música da autora, da musicalidade do texto e do sentido do texto".

Num cenário despojado, são as palavras da autora que contam. Esta "Viagem de Inverno" evoca a obra-prima do romantismo alemão "Winterreise", os 'lieder' compostos por Franz Schubert que acompanham Jelinek desde a infância, quando aprendeu a tocá-los ao piano.

Nesta viagem, Jelinek usa o Inverno como metáfora dos infernos contemporâneos. Uma viagem interior, em que revisita a sua biografia, em que caminha dentro de si mesma, no seu isolamento e na estranheza que lhe provoca a época atual, ao mesmo tempo que vai evocando paisagens humanas desoladoras, que todos reconhecem.

É o caso daqueles "que recusam todas as ordens" enquanto "outros dão ordens", da "noiva rica que vão embelezando", ou do "dinheiro que é um peso em si", como se ouve na representação.

Jelinek faz de "Viagem de Inverno" um texto contínuo e descontínuo, um texto denso que funciona como um murro no estômago; um texto que versa "sobre o tempo e a memória", e que é também "uma crítica sagaz à ausência da memória ou à perda da memória", frisou Nuno Carinhas.

Seja a perda da memória coletiva ou individual, "a qual podemos passar se durarmos muito tempo, mas que mesmo assim aqui persiste", enfatizou Carinhas, ao destacar que a personagem se afunda "porque não dá por os seus pés derreterem no gelo -- ela afunda-se, e afunda-se a tocar o seu velho realejo que já ninguém quer ouvir".

Neste texto da escritora austríaca nascida em 1946 -- que tem tradução de António Sousa Ribeiro e que a CTA edita em livro na sua coleção de teatro, no dia da estreia da peça -- há "uma tenacidade e uma persistência de estar e ganhar à vida", frisa o encenador.

"E nisso, obviamente, está implicado também o tempo, o nosso tempo e o tempo da história, o tempo histórico. Esse tempo que é negado. O tempo que é guardado nas caves e do qual já ninguém quer ouvir falar -- não existe", observou Nuno Carinhas.

Esta obra de Jelinek é assim, também, um texto sobre "o não temos nada a ver com isso", um texto sobre quem deixou o que resta, o que fica, sobre "quem deixou as dentaduras, os cabelos, as malas e tudo" que não puderam levar com eles.

São questões que atualmente não preocupam e de que "não queremos saber", porque são questões passadas "do tempo deles [de outrora], e agora é o nosso tempo": "Tiveram azar [no passado], mas nós não temos nada a ver com isso", ironizou o encenador.

Em "Viagem de Inverno", Elfriede Jelinek põe a Áustria a nu, porque a autora, à semelhança de outros autores austríacos, "como Thomas Bernhard, Peter Handke e Karl Krauss, faz parte daquele grupinho (...) dos que não perdoam" ao seu país natal, observou Nuno Carinhas.

"Não perdoam à maioria uma visão da Áustria que os importuna imenso e com a qual eles importunam a maioria. E isso é muito interessante", enfatizou Nuno Carinhas, sublinhando a "sátira violentíssima" do texto de Elfriede Jelinek.

Outro dos aspetos destacados de "Viagem de Inverno" é não de tratar de um texto de "autocomiseração", mas antes de um texto "que está sempre ao ataque".

"Não é 'pobre de mim', é desferindo, é afrontando, é provocando [que a obra se constrói], com todos os assuntos que nos dizem respeito hoje em dia, a uma velocidade que nos assolou que contrasta muito com essa outra necessidade de fazer apelo à memória", frisou Nuno Carinhas à Lusa, sublinhando tratar-se de um texto em que até os afetos são postos em causa.

"Com o tempo, poderia ter escolhido, finalmente, uma outra viagem e um outro 'realejo', mas, nesse caso, já não teria sido tempo e não teria sido um realejo", diz uma das atrizes, na obra, numa referência à canção final do ciclo de Schubert, "O Homem do Realejo".

"Isso também poderia ter tido lugar fora da água, fora das profundezas. Nesse caso, teria sido uma coisa diferente. E que coisa! Pois, é claro que teria sido uma coisa diferente", diz uma das personagens no final da peça.

"Viagem de Inverno" fica em cena até 23 de fevereiro, com representações de quinta-feira a sábado, às 21:00, e, aos domingos, às 17:00. "Viagem de inverno" tem cenografia e figurinos de Nuno Carinhas e desenho de luz de Nuno Meira.

CP // MAG

Lusa/fim

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