O peso da ditadura na obra do escritor Carlos de Oliveira e "a parte submersa do iceberg"

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Porto Canal com Lusa

Vila Franca de Xira, Lisboa, 17 mar (Lusa) - O escritor Carlos de Oliveira viveu sob a ditadura, ao ponto de afirmar que não tinha biografia, afundada que estava como um iceberg, mas uma exposição que lhe é dedicada traz agora à superfície esse seu mundo interior.

"Pensando bem, não tenho biografia", escreveu Carlos de Oliveira (1921-1981) na abertura do texto "O iceberg", com data de 1966, frase incluída depois em "O Aprendiz de Feiticeiro" (1971) e que sustenta o nome da exposição "Carlos de Oliveira: A parte submersa do iceberg", que abre ao público no sábado, no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira.

Segundo o curador da mostra dedicada ao autor, o professor Osvaldo Silvestre, da Universidade de Coimbra, essa frase é bem reveladora da dificuldade em separar o elemento histórico do pessoal, no caso de Carlos de Oliveira.

A afirmação de Carlos de Oliveira é explicada pelo próprio no texto que a sustenta: "Todo o escritor português marginalizado sofre biograficamente do que posso denominar complexo do iceberg: um terço visível, dois terços debaixo de água. A parte submersa pelas circunstâncias que nos impediram de exprimir o que pensamos, de participar na vida pública, é um peso (quase morto) que dia a dia nos puxa para o fundo. Entretanto a linha de flutuação vai subindo e a parte que se vê diminui proporcionalmente".

Osvaldo Silvestre esclarece que, para Carlos de Oliveira, "as circunstâncias" são um eufemismo para o facto de toda a sua vida adulta ter decorrido debaixo de uma ditadura, tendo vivido pouco mais de seis anos em democracia.

Contudo, Carlos de Oliveira acaba por substituir circunstância por intolerância, ao afirmar que o que lhe "cai sobre os ombros e tenta empurrar para baixo o resto do iceberg é a mão da intolerância, escrevendo sempre à sua maneira a biografia que não temos, procurando riscar, sumir o que flutua ainda".

Osvaldo Silvestre explica à agência Lusa que o autor reconheceu, na altura, que lhe restava a "travessia do deserto", mas que, como compensação, ficava a "biografia interior", pois, "dentro, mandamos nós".

Este foi para Carlos de Oliveira um exercício "difícil e duro", mas necessário à dignidade pessoal, porque, como afirmou o próprio autor, "a partida está ganha, pode perdê-la o escritor, mas o homem vence-a de certeza".

Com humildade, Carlos de Oliveira afasta a ideia de que noutras circunstâncias teria uma riqueza biográfica excecional: "Não senhor. Digo apenas que tinha direito à experiência da minha própria liberdade. Oportunidades limpas. Viver, falar, agir, segundo uma consciência que não julgo tenebrosa nem pervertida".

Para Osvaldo Silvestre, a imagem da parte submersa do iceberg exprime toda a vida que as circunstâncias históricas negaram a Carlos de Oliveira e aos seus companheiros.

Com esta exposição, resultado de uma primeira expedição ao espólio do escritor, os investigadores começaram a perceber que "a parte submersa é tão fascinante como a parte visível".

"Os leitores de Carlos de Oliveira sempre suspeitaram que a depuração resultante do trabalho literário do autor pressupunha um arquivo de dimensões consideráveis, uma sedimentação de camadas de escrita, textos, materiais, projetos -- e leituras, referências, citações", afirmou.

É "esse laboratório" que agora se pode começar a visitar, "estudando a génese da obra, trazendo à luz do dia todo um continente até aqui oculto" e livrando-o da fatalidade do "arquivo morto".

Osvaldo Silvestre afirma que, "nos casos de grandeza real, como é o caso de Carlos de Oliveira, o tempo encarrega-se de trazer à superfície a parte invisível do iceberg, fazendo descer a linha de flutuação, invertendo a economia do visível e do invisível.

"É esse mundo interior em expansão que aqui se apresenta pela primeira vez", numa exposição cujo tema é precisamente "Carlos de Oliveira: A Parte Submersa do Iceberg".

Carlos de Oliveira, filho de emigrantes portugueses no Brasil, nasceu em Belém do Pará e veio para Portugal com dois anos.

É considerado um dos grandes escritores portugueses do século XX, quer na poesia, que reuniu já tardiamente sob a designação "Trabalho Poético", quer na ficção, desde o primeiro romance -- "Casa na Duna" (1943) -- até ao último, "Finisterra. Paisagem e Povoamento" (1978), sem esquecer o seu livro mais popular, "Uma Abelha na Chuva" (1953), adaptado ao cinema por Fernando Lopes, em 1971.

Alguns dos seus livros mais significativos foram traduzidos para várias línguas, tendo além disso suscitado uma atenção constante da crítica ao longo de toda a sua vida.

O seu espólio encontra-se depositado no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, sendo esta a primeira vez que é exposto em público.

A exposição "Carlos de Oliveira: A parte submersa do iceberg" fica aberta ao público de 18 de março a 29 de outubro.

AL // MAG

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